terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Os aiatolás e o apartheid político brasileiro

O post de Pedro Doria sobre as próximas eleições no Irã avança muito além das tradicionais e bizarras caricaturas de aiatolás, mostrando as opções políticas de um país interessante e complexo, tal qual o Brasil. Lá pelas tantas ele cita o professor Abbas Milani, provavelmente o maior especialista no país que vive no exterior, que classifica o governo iraniano pós-revolucionário como “uma ‘democracia de apartheid’. Quer dizer: a democracia não é para todos e há muitos excluídos. Mas, dentre aqueles poucos que têm acesso, a disputa por poder é real. Depois desse comentário, ele passa a narrar as diferenças políticas entre os candidatos. Mohammad Khatami, pró-reformas e preferido do Ocidente e Mahmoud Ahmadinejad, conservador e preferido pelo conselho de anciões e pelo aiatolá Ali Khamenei.

Mas eu parei no apartheid político... reli, e pensei: e o Brasil?

1) Podemos dizer que a democracia é para todos?

2) Podemos dizer que entre aqueles poucos que têm acesso, a disputa por poder é real?

Podemos dizer que a democracia é para todos? De um ponto de vista puramente formal, podemos dizer que sim, em tese todos são obrigados a votar e, de fato, não houve em tempos recentes maiores distúrbios durante os processos eleitorais. Os mais ufanistas gostam de citar o rumoroso caso da eleição de Bush para o segundo mandato - com votação fraudada, para mostrar que a democracia brasileira já superou esses problemas. De fato, essa é uma vitória formal de nossa democracia. Mas não basta olhar apenas para sua parte formal ou espectral, é importante entender seu conteúdo. Aí as coisas ficam mais complicadas.

Fiquemos somente com o poder do povo: o poder legislativo, verdadeiro pulmão de qualquer democracia; no Brasil, distribuído em duas casas legislativas, Câmara Federal e Senado.

Os representantes do Senado são tipicamente representantes das oligarquias estaduais, casa responsável por nosso federalismo e, segundo alguns, desnecessária. São três senadores por estado da federação, não importando seu tamanho, nem sua população, nem sua economia. O que está em jogo nessa casa são os "interesses dos estados". Nessa casa, o Amapá com 384.825 eleitores elege três senadores, o mesmo número que democraticamente São Paulo também elege, com 29.143.392 eleitores ou Rio Grande do Sul, com 7.925.459 eleitores.

Os representantes da Câmara, em tese, deveriam representar proporcionalmente a população brasileira, mas na prática há enormes distorções. São Paulo elege o número máximo de 70 deputados federais, cada um representando 586 mil habitantes. Já o Amapá elege o número mínimo de 8 deputados, cada um representando cerca de 48.000 eleitores. Isto é, menos do que um décimo da representação por habitante de São Paulo! São 11 estados na mesma situação do Amapá numa federação com 26 estados!

Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul, com maior população, detém também maior parte da produção industrial e a esmagadora oferta de serviços, especialmente do terciário superior, gerando a maior parte da riqueza e do desenvolvimento social, mas são politicamente nanicos no atual sistema político brasileiro. Assim, paradoxalmente, graças aos milagres da matemática, o peso político dos interesses urbanos é muito menor do que deveria ser, havendo nitidamente um descompasso entre a representação política e os interesses sociais e econômicos e um verdadeiro apartheid entre os interesses do Brasil urbano e a sua representação política.

As grandes tensões sociais em números absolutos localizam-se nas áreas urbanas. Talvez seja por isso que problemas prementes sejam postergados ad infinitum. o problema das favelas, cruel, urgente, não tem, do ponto de vista político, o peso que tem do ponto de vista social, já que se concentra nos grandes e sub representados politicamente centros urbanos.

Um argumento muito usado pelos defensores do atual sistema é o medo de que os estados pequenos sejam esquecidos em suas demandas, frente aos estados maiores e mais fortes. - que haja "quebra do pacto federativo". Contudo, eles já são atualmente esquecidos por suas oligarquias, como o Maranhão, com péssimos indicadores sociais, governado pela família Sarney há décadas. Que a presidência do Senado Federal esteja sendo exercida, pela segunda vez, por um senador do Amapá é um acinte à democracia brasileira e uma aberração social, posto o que esse senhor representa para os interesses do Brasil moderno, urbano e industrial.



Chegamos, desse modo, pelo exemplo histórico, à resposta da primeira pergunta: não, a democracia brasileira tem seus pulmões doentes. O nosso atual sistema de representação legislativa impede uma democracia para todos. Ainda que, do ponto de vista formal, todo o teatro seja solenemente executado: vários candidatos, filas nos locais de votação, renovação do executivo e do legislativo etc. o controle das decisões de Estado tem grande autonomia e independência frente à sociedade e às “escolhas democráticas” - a tal da "vontade popular". Com a matemática milagrosa do sistema eleitoral brasileiro, bastiões do coronealismo hipertrofiados de poder, os verdadeiros donos do poder, ainda detém parcelas fundamentais do Estado brasileiro.

Os "novos" presidentes da Câmara e do Senado são representantes ilustres do alto clero - em oposição ao baixo clero (esses só possuem castelos...). O alto clero outorga a si as decisões importantes, aquelas chamadas pomposamente de decisões de estado. Para manter a analogia com o início do post, tal qual os aiatolás exercem essa função no Irã. O clubinho é fechado e entrar nele exige fazer milagres - dente os mais notáveis, a posse de canais de TV e o enriquecimento extraordinário.

Existe disputa de poder real nesse sistema de representação política? A cooptação e a capacidade de conciliar interesses faz com que, numa perspectiva histórica mais ampla, a resposta seja não, e que as grandes mudanças do curto prazo apareçam apenas como leves acomodações. È o tal do afidalgamento a que se refere Faoro. Quando o cara chega no poder ou perto dele, fica igual a quem o possui. Assim, as antigas oligarquias sobrevivem eleição após eleição, executivo após executivo, incólumes, trazendo para o Brasil uma impressionante e perversa estabilidade institucional. Formando um verdadeiro e nefasto conselho de anciões. Se houvesse disputa real entre os dois brasis, o moderno e o arcaico, a aliança Lula-Sarney ou ACM-FHC jamais poderia ter existido... Claro está que nessas alianças o grande excluído é o eleitor, que, como eu, morador de uma grande cidade, não quer o chefe do clã na presidência do Senado, nem seus afiliados espraiados eternamente pelos ministérios da esplanada.

Como poderemos nos libertar desse apartheid político que tolhe acintiosamente a representação política de seus moradores urbanos e descomprometidos com as oligarquais - a grande maioria dos brasileiros?

2 comentários:

  1. Legal poder discutir estas coisas publicamente: bela iniciativa! Tua postagem ressalta as graves distorções no sistema de representação política no Brasil e a injustiça delas decorrente. Estou integralmente contigo até aí. Mas quem elege as oligarquias rurais no Brasil também é submetido a elas, e vota nelas. Malgrado trate-se de cidadão brasileiros com poder maior do que os cidadãos dos estados "urbanos" - um erro no sistema - trata-se de cidadãos brasileiros e equilibrar o poder destes com o poder dos cidadãos urbanos não evitará escolhas infelizes, embora quiçá minimize os riscos. Em síntese: eu apostaria mais na mudança de consciência do que no aperfeiçoamento do sistema (que, diga-se de passagem, mais facilmente pode ser obtido a partir da primeira condição).

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  2. não evitará escolhas infelizes, embora quiçá minimize os riscos. eu apostaria mais na mudança de consciência.

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