sexta-feira, 30 de julho de 2010

Para além da antropofagia

O desenvolvimentismo, enquanto corrente de pensamento econômico, não é importado, regurgitado e cuspido. Não pertence ao longo cabedal de pensamentos que, oriudos do estrangeiro, por aqui se fixaram como cópias estranhas de suas fontes. Ao contrário, é uma contribuição original do pensamento brasileiro que não obedeceu à lógica de introjetar uma cultura alienígena. Mesmo que o liberalismo, o positivismo e outros ismos sejam influências importantes para sua formação, o raciocínio desenvolvimentista que guiou os rumos da economia brasileira entre 1930 e 1980 foi e permaneceu original, fornecendo exemplos avant la lettre de teorias econômicas posteriormente escritas. O exemplo clássico é o das políticas de sustentação da renda praticadas por Vargas no início da década de 30, que anteciparam, na prática, os principais resultados teóricos da teoria geral de Keynes, publicado em 1936.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Ainda resta a tarefa de escrever uma filosofia dos subúrbios.

 Chico Buarque tem insights ótimos em músicas como Subúrbios e Ode aos Ratos, e em CDs temáticos como O país da delicadeza perdida. Em sua literatura, Estorvo, me parece impressionante. Não é somente uma estética do bruto e do grosseiro, mas também, e, sobretudo, um retrato que nos é muito familiar. Não conheço outros brasilianistas que trabalhem esse tema. Agradeço dicas.

Subúrbios
Lá não tem brisa/Não tem verde-azuis/Não tem frescura nem atrevimento/Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto/É contra-senha, é cara a tapa ...

...Lá não tem moças douradas/Expostas, andam nus/Pelas quebradas teus exus/Não tem turistas/Não sai foto nas revistas
Lá tem Jesus/E está de costas

Ode aos Ratos

...Rato de rua/aborígene do lodo/Fuça gelada/Couraça de sabão
Quase risonho/Profanador de tumba/Sobrevivente/ À chacina e à lei do cão
Saqueador da metrópole/Tenaz roedor/De toda esperança/Estuporador da ilusão
Ó meu semelhante/Filho de Deus, meu irmão/

À propósito do título: fiquei muito impressionado com o relato do Flávio Williges num saudoso colóquio em Santa Cruz sobre o projeto que Heidegger tinha de escrever uma filosofia do operário. Desistiu quando descobriu que alguém já tinha feito. Mudou de tema e escreveu uma filosofia do camponês, aliás, um das obras-prima da filosofia do século XX: Ser e Tempo.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Produção temporária e desenvolvimento brasileiro

O Seminário de pesquisa do PPGE trouxe ótima palestra esta quarta-feira. O professor Marcelo Eduardo Alves da Silva apresentou um modelo econométrico macroeconômico de equilíbrio geral (muito técnico, como dá para ver), que traz resultados importantes para a compreensão da dinâmica de crescimento brasileira. Partindo dos pressupostos da teoria microeconômica tradicional, ou seja, considerando que a economia tende ao equilíbrio, que a trajetória de crescimento é dada pelo nível tecnológico e pela taxa demográfica e por choques exógenos, Silva apresenta um padrão de crescimento para a economia brasileira nos últimos 14 anos. Segundo suas conclusões, os choques que mais movimentam a economia brasileira são:
51% Produção temporária - mudanças de produtividade.
23% Choques de crescimento - mudanças institucionais.
13% Termos de intercâmbio - comércio internacional.
10% prêmio de risco - mercado financeiro internacional.
Esses dados mostram que a economia brasileira está mais próxima das 'pequenas economias abertas desenvolvidas' do que das 'economias emergentes', de modo que não estamos tão dependentes do comércio exterior, e, sobretudo, das finanças internacionais. Ou seja, esses dados fornecem bom material para explicar por que a crise de 2009 foi só uma marolinha do ponto de vista da teoria tradicional (o que, me parece, ser uma contribuição relevante para pensar o desenvolvimento brasileiro).
Outro aspecto interessante da análise é a importância dos aumentos de produtividade. Especulo que esses aumentos estão associados ao aumento da eletrificação rural (que permite o uso de máquinas, sobretudo na construção civil e agricultura), do uso de computadores e internet, em especial na administração pública (que deu saltos extraordinários de produtividade e eficiência na última década com o uso de sistemas integrados de pagamento, despesa etc) e nas ditas profissões liberais, incluindo a criação de novos setores industriais e de serviços associados ao uso da tecnologia. Outro item parece ser a universalização da telefonia móvel, tornando muito mais eficiente o setor de serviços. Esses choques tecnológicos associados a políticas governamentais como a política de compras da Petrobras e programas de distribuição de renda mostram um país que cresce com fundamentos macroecômicos sólidos segundo os padrões do mainstream.

terça-feira, 20 de julho de 2010

As éticas de Max Weber

Movido por questões burocráticas, revirei a papelada empoeirada procurando a súmula da disciplina As Éticas de Max Weber, ministrada pelo professor Nelson Boeira no distante ano de 1999. Não encontrei a súmula, apenas minhas anotações. Foi uma das disciplinas mais interessantes que assisti na pós-graduação, da qual praticamente não permaneceram registros. Seria realmente uma pena perdê-los por completo:

"A questão que me intriga nesta disciplina pode ser posta dentro dos moldes de Loewith: "O tema explícito das investigações de Weber é o capitalismo... A questão em torno do capitalismo, contida na questão do mundo contemporâneo, implica por seu turno uma determinada idéia daquilo que dentro deste mundo capitalista faz do homem um "homem", o que dentro dele constitui sua humanidade". Isto me levou a pensar quais os problemas específicos do capitalismo que devem ser levados em conta para sua investigação. Dois problemas centrais já estão expostos na teoria do liberalismo clássico: i) o que constitui a humanidade do homem; de fato, o capitalismo postula o homem como naturalmente egoísta, que age exclusivamente em nome de seus interesses egoístas; ii) as relações entre os homens ocorrem, primordialmente, através da mediação financeira. Isto acarreta um problema grave, que parece estar no centro da discussão sobre a sociedade e o Estado no final do século passado: como é possível a sociedade, posto que o homem é egoísta e as relações entre os homens basicamente mediadas pelo dinheiro? Seria crível que, com estas concepções de homem e de relações sociais, os homens se encontrassem em um "estado de natureza". Entretanto, este estado de guerra não acontece, sendo necessário fornecer uma justificação.


Weber também oferece uma explicação a esta questão, apesar de situá-la em moldes bem diferentes.

Gostaria de tentar articular esta questão em torno da qual esta disciplina se desenvolve: os processos de racionalização levam a diferentes esferas de vida, o que ainda não é nosso problema. O problema surge quando essas diferentes esferas de vida entram em choque entre si. Como estas diferentes esferas, especialmente a econômica e a religiosa, se articulam parece ser a chave explicativa para a possibilidade de nossa sociedade. De uma maneira mais ampla, como essas esferas de vida podem permanecer unidas apesar de suas incompatibilidades passou a ser a questão. A minha hipótese consiste no fato de que não me convencia que apenas "afinidades eletivas" entre as esfera econômica e religiosa fornecessem a explicação para a coesão das esferas da vida. Guenther Roth dá respaldo a estas especulações quando identifica a questão central de Economia e Sociedade como sendo o problema da dominação: "The Sociology of Domination is the core of Economy and Society. The major purpose of the work was the construction of a typology of associations, with most proeminence given to the types of domination and their relation to self-satisfaction through appropriation." (p. LXXXVIII)

O problema de buscar respostas à minha questão inicial consiste em que a sociologia da dominação forma, por assim dizer, a cúpula de um edifício conceitual, cujas as bases estão pressupostas para a explicação da unidade entre as diferentes esferas de vida. Parte do problema é, entretanto, resolvido: a unidade acontece pois existe obediência ao comando; esta obediência é, em geral, mistura do hábito, recurso e crença na legitimidade. O problema central é transferido já que a pergunta passa a ser: como as ordens se formam? A resposta à esta pergunta leva a um estudo mais aprofundado da obra de Weber, ao mesmo tempo em que mostram o seu interesse e a relevância para o estudo da sociedade contemporânea."

sábado, 17 de julho de 2010

O homem cordial: um ponto de partida para filosofia?

Um dos pontos altos do Diários de um filósofo no Brasil do professor Júlio Cabrera é a discussão da cordialidade como dimensão a ser resgatada e refletida do homem brasileiro. 

"Nenhuma das características mencionadas por Holanda e comentadas por Margutti exclui per se o trabalho filosófico, como se fosse possível afirmar: "Não, tu és individualista, não respeita regras, és demasiado pragmático e afetivo; portanto, não podes ser filósofo". Nenhuma das características da herança portuguesa parece excluir a possibilidade de fazer filosofia com elas. De fato, sempre somos levados por alguma influência, mas não parece mais natural e sadio enfrentar-nos com nossa herança cultural ibérica e lusitana, do que tentar trocar essa influência pela influência britânica ou alemã? Creio que filósofos brasileiros poderiam ser genuínos filósofos assumindo aquelas características, em lugar de ligá-las de maneira inerte e sem dialética com o estigma do "atraso". Margutti, pelo contrário, seguindo Holanda, parece ver no homem cordial o inimigo absoluto do filosofar, e a superação da cordialidade como o caminho certo para a modernização filosófica do Brasil. Eu não creio que seja esta a linha mais correta."

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Interesses supraindividuais

"Em seu famoso livro Conhecimento e Interesse (1968), [Habermas] assinalava que o conhecimento depende constantemente de determinados interesses. Sempre que existir um pensar sobre qualquer coisa, ele é feito dentro do contexto de uma sociedade competitiva. Ou seja, qualquer pessoa pensante sempre persegue também objetivos concretos, muitas vezes em interesse próprio. Assim, o esforço pelo conhecimento não é inocente. Ele está constantemente à procura de vantagens."
Em

Família Corleone

É um verdadeiro universo paralelo a mitologia que se construiu em torno da família italiana imaginada por Mario Puzo e filmada por Francis Ford Coppola imigrada para Nova Yorque.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

O espírito do capitalismo

As mais insignificantes ações que afetem o crédito de um homem devem ser consideradas. O som do teu martelo às 5 da manhã, ou às 8 da noite ouvidos por um credor o fará conceder-te seis meses a mais de crédito; ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte se te vir em uma mesa de bilhar ou escutar a tua voz, em uma taverna, quando deverias estar no trabalho; exigi-lo-á de ti antes que possas dispor dele.

Benjamim Franklin apud Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Aforismo?

Correio do Povo, 03 de dezembro de1927:
"É um conceito vulgar que se impõe como um aforismo. Todo o desenvolvimento econômico deve por objetivo tornar a riqueza abundante pelo trabalho e ensinar o homem a usar essa riqueza pela cultura."

terça-feira, 13 de julho de 2010

Além mar

Um pouco ufanista, mas bem informativo:

...Macau teve no Colégio de São Paulo de Macau a primeira universidade ocidental na Ásia, [...] a Escola Médico-Cirúrgica de Goa, criada em 1842, formou até à invasão indiana do Estado Português da Índia mais de 3000 médicos, [...] os portugueses estabeleceram em Macau a primeira tipografia de caracteres móveis em 1585, [...] na Etiópia funcionou a primeira prensa editorial desde 1515, [...] no Japão se imprimiram os primeiros livros em 1598, graças ao saber técnico dos nossos missionários, [...] Macau teve na Abelha na China o primeiro jornal do continente, [...] em Évora se ensinavam em finais do século XVI as grandes línguas do sub-continente indiano...
Mais no Combustões

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Iconoclastia

Iconoclastia ou iconoclasmo (do grego εικών, transl. eikon, "ícone", e κλαστειν, transl. klastein, "quebrar") é a doutrina que se opõe ao culto de ícones religiosos e outras obras, geralmente por motivos políticos ou religiosos. Por derivação, passou a ser usado o termo para todo aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas, ou que é contra qualquer tradição. Nessa concepção, o termo é muito usado para definir as vanguardas artísticas do início do século XX.
(...)
As escolas iconoclastas enfatizam a compreensão e a transformação interior. São exemplos delas: o sufismo na religião islâmica, o hassidismo e a cabala no judaísmo, o advaita ventana no hinduísmo, e o zen e o dzogchen, no budismo. Esses movimentos nunca se expandiram bastante por serem considerados suspeitos pelas hierarquias religiosas estabelecidas.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Iconoclastia

Tradeoffs entre eficiência alocativa, inovativa e de crescimento

Num mundo caracterizado pelas inovações técnicas e gerenciais (tanto contínuas, ie, ao longo de trajetórias tecnológicas bem definidas, quanto descontínuas, com mudança de paradigmas) as defasagens ou lideranças tecnológicas moldam sinais de lucratividade e alocação microeconômica de recursos. A multiplicidade de sinais de mercado faz com que os processos microeconômicos de ajuste tenham grande probabilidade de serem assimétricos. Essas realocações microeconômicas assimétricas, por sua vez, afetam o dinamismo econômico de longo prazo das economias, tanto em termos da taxa de crescimento compatível com equilíbrio do BP, quanto em termos da inovação tecnológica.

Cimoli, Dosi, Nelson e Stiglitz ao aprofundarem este ponto em Instituições e políticas moldando o desenvolvimento industrial: uma nota introdutória, distinguem entre as noções de:

(i) eficiência alocativa;

(ii) eficiência inovativa (ou “ schumpeteriana”); e,

(iii) eficiência de crescimento de padrões particulares de produção.

As escolhas possíveis entre essas três noções têm pouco a ver com problemas relacionados à informação incompleta, ainda que esses efeitos possam ser relevantes numa análise mais ampla; mas com oportunidades econômicas decorrentes de decisões passadas, bem como com a assimetria que caracteriza a tomada de decisão frente a um passado irrevogável e a um futuro incerto.

Argumentam os autores que mecanismos relativos à alocação de recursos afetam hoje e afetarão a direção e a velocidade futuras das inovações, de modo que o conjunto das decisões individuais ao longo do curso histórico acabam determinando quais competências técnicas serão acumuladas, com maior potencial inovativo e presumíveis economias de escala. O progresso técnico, portanto, evolui em permanente desequilíbrio, de maneira dinâmica, com decisões presentes influenciando os coeficientes técnicos futuros, bem como os setores ou indústrias mais lucrativas para o investimento privado.

Para países distantes da fronteira tecnológica, a alocação eficiente pode gerar efeitos negativos no longo prazo sobre as elasticidade de demanda das mercadorias produzidas (eficiência de crescimento) e do potencial inovativo (eficiência inovativa). As escolhas alocativas presentes influenciam (induzem) a direção e a velocidade da evolução futura das vantagens/desvantagens tecnológicas de um sistema econômico, de modo que o custo de catch up pode ser inviável num país subdesenvolvido, onde a escassez de recursos é aguda e permanente.

O trade-off entre eficiência alocativa e inovativa aparece claramente ao se analisar os países relativamente distantes da fronteira tecnológica. Os padrões de especialização de um país são determinados pelo tamanho relativo das defasagens ou dos avanços específicos dos setores dinâmicos da economia. Se a defasagem em todas as tecnologias mais dinâmicas (onde estão as melhores oportunidades) for maior, a eficiência alocativa estará em conflito direto com a eficiência inovativa. Desse modo, a probabilidade de tais trade-offs é proporcional à distância que separa cada país da fronteira tecnológica nas mais novas, dinâmicas e penetrantes tecnologias.

Um argumento semelhante explica como o trade-off entre eficiência alocativa e de crescimento se apresenta aos países, que podendo especializar-se “eficientemente” na produção de mercadorias com fraca demanda internacional, restringem seu potencial de crescimento àquele consistente com equilíbrio de BP.

Em condições de rendimentos não-decrescentes (e frequentemente crescentes), os mercados não conseguem relacionar as variáveis eficiência inovativa e de crescimento aos sinais de lucratividade relativa para as empresas: com isto, são necessárias políticas.

Desse modo, a superação dos trade-offs tratados acima constituem o domínio fundamental para as políticas de desenvolvimento econômico. A compreensão acurada dos sinas de mercado, com intervenções nos padrões dos sinais, regras das respostas alocativas e formas de organização institucional da “máquina econômica” são mais importantes em fases de transição entre regimes tecnológicos, que definem o novo conjunto de oportunidades e ameaças ao desenvolvimento.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Capacitações coletivas, cultura e Desenvolvimento como Liberdade de A. Sen.

Pollock, do Wall Street Journal, fez o seguinte comentário sobre o prêmio Nobel concedido a Amartya Sen: [seu trabalho] “tem feito pouco mais do que dar voz a visões estúpidas de esquerda que dominam o seu mundo”. Segundo Evans, essa reação frente a um trabalho elegante, logicamente bem argumentado e formalmente bem construído é histérica.

Utilizando a apresentação sintética da teoria de Sen feita em Desenvolvimento como Liberdade, Evans sugere que a reação defensiva do WSJ correta, pois a teoria lá exposta desafia a visão de mundo conservadora do WSJ muito mais do que as citações elogiosas de Sen a Adam Smith sugerem.

O desafio da abordagem das capacitações

O desenvolvimento deve ser avaliado em termos da expansão das capacitações, de modo que as pessoas possam viver as vidas que elas valorizam – e têm razão para valorizar. Esta é definição de liberdade de Sen. Educação, saúde e direitos das mulheres são eles mesmos constitutivos do desenvolvimento, fins em si mesmos.
Evans considera que a abordagem das capacitações contribui não somente para uma ampliação do conceito de desenvolvimento, mas também para uma efetiva utilização da escolha social, longamente estudada por Sen. Incentivados pela análise de Arrow sobre a impossibilidade das escolhas coletivas, os economistas de um modo geral pouco enfatizam a importância do debate político e da discussão no estabelecimento de metas para o desenvolvimento.
Sen ataca essa relutância com uma efetividade impressionante.
1) Usando suas habilidades em análise formal, ele argumenta que o aumento da quantidade de informações levadas em consideração na tomada de decisão recolocam em cena a questão da escolha social.
2) Tendo mostrado formalmente que a escolha social é possível, Sen sugere que ela é necessária, utilizando dois sub-argumentos:
a. renda real é uma métrica analiticamente inadequada para comparações de bem-estar;
b. os esforços utilitaristas para reduzir o bem-estar a algo homogêneo é igualmente inadequado. É preciso explicitar os diferentes pesos dos diferentes fatores que compõem a qualidade de vida (ou bem-estar) e então debater publicamente os pesos atribuídos às preferências que devem nortear o desenvolvimento.
A consequência da argumentação de Sen é dupla:
1) Desenvolvimento como expansão das capacitações da cidadania implica em um conjunto muito diferente de decisões alocativas e estratégias de crescimento.
2) Ela implica que escolhas sobre essas alocações e estratégias devem ser democráticas, não num sentido fino de eleições e mudança de representantes periodicamente, mas num sentido robusto, à medida que a democracia é uma coisa boa, um fim do desenvolvimento, por si só, que aprimora constantemente a cidadania ao permitir que os cidadãos participem das decisões públicas e estabeleçam, no fim das contas, os fins almejados do desenvolvimento.
É o segundo aspecto do pensamento de Sen que incomoda o comentarista do WSJ segundo Evans.
Contudo, prossegue Evans, a análise de Sen foca o indíviduo e não explora as implicações mais gerais que sua concepção de desenvolvimento enseja. Capacitações individuais dependem de capacitações coletivas. Do mesmo modo, ele não explora o fato de que a concentração do poder econômico sobre os meios de produção e difusão culturais podem e, de fato, comprometem a capacidade de decidir as coisas que as pessoas têm razão em valorizar.
Evans avança em sua análise argumentando que a coletividade organizada – partidos políticos, associações, conselhos distritais, grupos de mulheres, ONGs etc – são fundamentais para que os indivíduos possam escolher o que eles têm razão para valorizar. Essas organizações fornecem a arena para formular valores e preferências, bem como constroem os meios para alcançá-los, mesmo em face de poderosa oposição.
O que Sen não destaca no caso do Estado de Kerala, segundo Evans, é que o clima de discussão e debate que ele elogia está construído sobre a base de organizações sociais bem organizadas e mobilizadas, começando pelos partidos políticos e uniões comerciais. Estes veículos organizacionais fazem o processo deliberativo celebrado por Sen possível. Apoiar o desenvolvimento de ações coletivas é, desse modo, central para a expansão da liberdade.
Sugestões de Evans:
Políticas públicas que explicitamente reconheçam a importância da ação coletiva, facilitando sua ação por meio de organizações civis, bem como removendo obstáculos ao seu bom funcionamento, são essenciais para o desenvolvimento como liberdade.
Por outro lado, também falta uma análise, a partir dos pressupostos da abordagem das capacitações, de quais os processos de mercado podem se constituir como impedimento aos processos deliberativos de formação de preferências, que é essencial para a expansão das capacitações.
Evans considera que Sen não explora as maneiras pelas quais as influências de “condicionamento mental” podem sistematicamente refletir os interesses dos grandes grupos econômicos e do poder político. Muito embora Sen reconheça que “o sol não se ponha no império da cola-cola ou da MTV”, ele não explora as implicações desses impérios sobre as habilidades das pessoas escolherem a vida que elas têm razão para valorizar.
Explicitar as contradições entre desenvolvimento como liberdade e um crescente aumento da concentração de poder sobre a produção cultural, informação, e, portanto, das preferências traz novamente a questão das capacitações coletivas.
Sugestão de Evans: A maneira mais óbvia de estabelecer um contraponto à não-liberdade dos impérios da Coca-cola e da MTV é promover uma vibrante vida associativa que capacita os menos privilegiados a desenvolver suas próprias e distintivas preferências, bem como estabelecer prioridades baseadas sobre posições econômicas partilhadas e circunstâncias de vida, desenvolvendo estratégias para perseguir essas preferências de maneira autônoma.
Desse modo, Evans considera as contribuições de Sen preciosas, mas a análise do desenvolvimento como liberdade deve ir além dos argumentos que ele apresentou. Deve ser consequente e explicitar melhor o papel que as capacitações coletivas desempenham para a realização da liberdade, levando em conta os condicionantes de mercado que interferem nos processos de formação de preferências coletivo.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Liberdade como expansão das capacitações

Os seres humanos são os agentes, beneficiários e juízes do progresso, mas ocorre também que eles são - direta ou indiretamente – as fontes primárias de toda produção. Esse duplo papel dos seres humanos fornece um amplo campo para confusão entre meios e fins no planejamento e na formulação de políticas, enfatizando a produção e a prosperidade como essência do progresso e tratando as pessoas como os meios através dos quais esses progressos produtivos se tornam possíveis.


Um país pode ser muito rico em termos econômicos convencionais e mesmo assim ser muito pobre quanto à qualidade de vida humana, como, pex, África do Sul e Brasil.

Para evitar que o planejamento para o desenvolvimento e a formulação geral de políticas sejam perturbados pela confusão entre fins e meios, Sen propõe considerar o tópico de identificação de fins, em termos dos quais a efetividade dos meios pode ser sistematicamente confirmada. Este é o objetivo da análise conceitual da abordagem das capacitações.

A abordagem das capacitações

A vida humana é um conjunto de “fazeres e seres” – chamados de funcionamentos. A abordagem das capacitações relaciona a avaliação da qualidade de vida ao acesso à capacidade dos indivíduos funcionarem como seres humanos, isto é, em termos da sua realização de atividades cujos valores sejam legítimos e da capacidade de se realizar aquilo que legitimamente se deseja.

Funcionamentos elementares: tais como o de evitar a morbidade e a mortalidade precoce, estar adequadamente nutrido, poder realizar os movimentos usuais etc.

Funcionamentos complexos: tais como a obtenção de auto-respeito, tomar parte na vida da comunidade e aparecer em público sem inibição.

Funcionamentos são constitutivos de uma pessoa e uma avaliação do bem-estar de uma pessoa tem que tomar a forma de um monitoramento desses elementos constituintes. Um funcionamento é uma conquista de uma pessoa: o que ela procura fazer ou ser.

Já a capacitação de uma pessoa é uma noção derivada, refletindo as várias combinações de funcionamentos que uma pessoa tem ou que pode atingir. Assim: a capacitação reflete a liberdade de uma pessoa para escolher entre diferentes formas de vida.

Liberdade instrumental – o melhor meio, a melhor escolha, para se atingir um fim determinado: ênfase nos meios.

Liberdade substantiva - liberdade de se viver o tipo de vida que alguém gostaria de viver, isto é, conforme seus valores, podendo realizá-los pois possui os funcionamentos necessários para tanto. Enfatizar os valores que uma pessoa legitimamente busca realizar é enfatizar o fim do desenvolvimento, que é garantir a ela a liberdade de viver do jeito que acha melhor.

A distinção entre funcionamentos e capacitações coloca ênfase na importância da liberdade de escolha de um tipo de vida ou de outro. Esta é uma ênfase que distingue a abordagem das capacitações de qualquer avaliação que considera apenas conquistas realizadas. Contudo, a habilidade de exercer a liberdade pode estar, em grande medida, dependente da educação e da saúde que recebemos. Desse modo, uma avaliação esclarecida e inteligente tanto sobre o estilo de vida que somos obrigados a levar quanto aquele que seríamos capazes de escolher, através das mudanças sociais, é o que propõe a abordagem de Sen do desenvolvimento.

Críticas às demais correntes de pensamento:

Utilitarismo
A noção utilitária de valor considera, em última análise, como utilidade individual uma determinada condição mental, como satisfação, alegria e atendimento de desejos. Ela é enganosa, pois pode falhar na indicação das privações reais de uma pessoa. Uma pessoa miserável pode não parecer em más condições pela métrica utilitarista, se ela estiver resignada com a vida que leva. Em situações de longa privação, as vítimas não sentem o sofrimento todo tempo, fazendo grandes esforços para encontrar prazer em pequenas coisas, para reduzir seus desejos a proporções modestas, “realistas”. A privação individual, dessa forma, pode não aparecer nas medidas de prazer, atendimento de desejos, etc. mesmo quando a pessoa está impossibilitada de ser adequadamente nutrida, vestida, educada etc.

Economia do desenvolvimento
Boa parte da vasta literatura do desenvolvimento utiliza uma base informacional utilitarista, o que limita os argumentos e a percepção acerca dos reais problemas do desenvolvimento. A abordagem das capacitações é superior às avaliações tradicionais pois a perspectiva da vida humana como combinação de vários funcionamentos e capacitações, e a análise da liberdade humana como aspecto central da vida fornecem uma base sólida para o exercício avaliativo.

Rawls
Este autor enfatiza a obtenção de “bens primários” por parte de diferentes pessoas, e sua teoria da justiça depende em grande medida no estabelecimento das comparações interpessoais. Este procedimento está baseado em bens, como “renda e bem-estar”, além das “liberdades básicas”, “poderes e prerrogativas de si” etc.

Segundo Sen, toda a lista de bens primários de Rawls ocupa-se mais dos meios do que dos fins, tratando de coisas que ajudam a alcançar o que queremos conquistar. Os bens primários são meios para se atingir a liberdade, enquanto as capacitações são expressão da própria liberdade. O problema com a avaliação de Rawls reside no fato de que, mesmo visando a objetivos iguais, a habilidade das pessoas para converter bens primários em funcionamentos é diferente, de tal forma que uma comparação interpessoal baseada na posse de bens primários não consegue refletir, geralmente, o ordenamento de suas reais liberdades na busca de quaisquer (variados) objetivos

domingo, 4 de julho de 2010

Conselho econômico

Chandragupta: Você me intriga. Existem muitas questões em minha cabeça.
Kautilya: Pergunte a eles, vossa Majestade. Existem muitas respostas na minha.

Kautilya foi conselheiro do Rei Chandragupta, primeiro grande Imperador da Índia, durante o século IV A.C. Seus conselhos aparecem no livro Arthashastra (literalmente, Da Prosperidade), talvez o primeiro tratado de Economia escrito, e, em alguns momentos, comparável ao Príncipe de Maquiavel.