sábado, 3 de fevereiro de 2007

O duplo papel da síntese: com-por e com-preender

Brum Torres em seu artigo Intuição cognitiva e pensamento de re apresenta um problema exegético fundamental para a Crítica da Razão Pura: como conciliar as doutrinas kantinas da Estética Transcendental com as da Analítica Transcendental. O problema consiste em conciliar a tese de que as intuições são cognições de objetos com a tese de que toda percepção envolve necessariamente uma síntese - ato do entendimento - e, portanto, todo objeto do conhecimento, propriamente falando, é sempre e somente produto de um juízo. Da tese da Analítica se segue que é absurdo sustentar que as intuições sejam ditas, em algum sentido relevante, cognições, pois cognições propriamente ditas somente ocorrem com o ato do juízo. Desse modo, quando abro os olhos pela manhã, para haver cognição de qualquer natureza, devo sempre estar fazendo juízos. Tese certamente contra-intuitiva e, se encontra base nos textos de Kant, certamente não dá conta da experiência cotidiana de nossa percepção, na qual passamos momentos felizes contemplando o teto do quarto de dormir ou paisagens sem pensarmos em nada. Adicionalmente, há o agravante denunciado por Brum Torres de que essa segunda interpretação implica, do ponto de vista exegético, em rasgar a Estética Transcental, abandonando a doutrina das intuições, para se ater somente à doutrina do juízo presente na Analítica Transcendental.

Como solução para o problema acima apresentado de conciliar as doutrinas da Crítica da Razão Pura sem amputar uma de suas partes, reconhecidamente a maior inovação teórica da primeira Crítica, pois permite delimitar os objetos do conhecimento aos limites da experiência possível, Brum Torres chama atenção para um texto de Heidegger, onde o filósofo alemão explica a síntese como um processo essencial e originalmente ambíguo. Por um lado, síntese significa com-por, isto é o ato primário e originário de pôr junto, de intuir uma totalidade. Quando apreendo uma série: PALAVRA, por exemplo, há um sentido em que o todo com-põe uma figura diferente da mera soma de suas partes. O con-junto dos sinais gráficos que com-põe a série acima é a soma de diversas percepções consideradas con-juntamente, isto é, sintetizadas enquanto dadas. Este primeiro nível de apreensão, onde ainda não intervém as atividades do entendimento, chamaremos pa-lavra, para diferenciar do objeto já com-preendido pelo entendimento. A com-posição dos sinais gráficos qua pa-lavra, é tarefa da sensibilidade, a faculdade que dá objetos (e não meramente impressões ou sensações).

A pa-lavra pode comportar cargas semânticas diversas. Palavras homônimas como banco (de sentar) e banco (instituição de crédito) fornecem um bom exemplo de casos em que a mesma intuição - fruto de uma com-posição que resulta em um mesmo con-junto de sinais, a mesma pa-lavra - fornecem cargas semânticas diferentes. É somente nesse segundo nível da percepção que intervém o outro sentido da síntese apresentado por Heidegger. Nesse caso, a síntese é um ato de espontaneidade do entendimento, é uma com-preensão. A com-preensão da pa-lavra resulta na apreensão de sentido e significado. Com-preendo banco como um objeto onde as pessoas sentam ao com-preender o contexto onde tal pa-lavra se encontra no ato do juízo. Quando com-preendo que Casa é o correlato semântico de Haus, realizo uma operação sintética do entendimento, julgo, a pa-lavra portuguesa Casa e a pa-lavra alemã Haus, como possuindo o mesmo significado. Tal operação é realizada pelo entendimento, ainda que pressuponha uma síntese prévia, a da com-posição da pa-lavra, realizada pela faculdade da sensibilidade.