sábado, 15 de outubro de 2011

Perelman e a teoria da argumentação

"Chaïm Perelman (1912-1984) nasceu em Varsóvia e transferiu-se para Bruxelas em 1925, naturalizando-se belga. Em seus primeiros passos intelectuais, Perelman recebeu uma sólida formação jurídica – escrevendo uma tese de doutoramento em direito, concluída em 1934 – e também em lógica formal – ocorrida no decorrer da década de 30 sob a influência do neopositivismo, defendendo uma tese de doutoramento em 1938, sobre o lógico alemão Gottlob Frege. Na década de 30, voltou à Polônia para estudar na famosa Escola Polonesa de Lógica, Matemática e Filosofia Positivista, onde foi aluno de Kotarbinski e Lukasiewicz. Com o advento da Segunda Guerra, toda essa formação logicista acabou se voltando contra ela mesma. Perelman, de origem judaica, não concordou em entregar o discurso sobre os valores ao arbítrio – que seria a consequência natural de uma posição neopositivista – e se interessou pela possibilidade de uma lógica dos juízos de valor, com o fim de subtrair este âmbito do domínio do irracional. A partir de 1948 e durante dez anos de pesquisas em conjunto com Lucie Olbrechts-Tyteca, estudiosa de ciências econômicas e sociais, Perelman abandonou seu estudo anterior de uma lógica específica dos juízos de valor – concluindo pela sua inexistência – e se voltou para as técnicas de argumentação e persuasão estudadas pelos antigos e, em particular, por Aristóteles. O resultado desta nova reflexão estão, sobretudo, em Rhétorique et Philosophie, de 1952, e no Traité de l’Argumentation, de 1958. Além do desenvolvimento da Nova Retórica, Perelman aprofundou seus estudos em algumas repercussões que a teoria da argumentação trazia para a filosofia, o direito, a moral e a justiça. Seus escritos possuem natureza fragmentária – com exceção do Traité de l’Argumentation – e estão espalhados em uma grande quantidade de artigos."  Fonte: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ARBZ-7FXHZA/1/disserta__o_marco_antonio_sousa_alves.pdf

sábado, 22 de janeiro de 2011

O estamento e as situações de exceção: a guerra do Paraguai e a campanha de Canudos

Último e derradeiro texto de Interpretações: segue pedaço da introdução e a conclusão. 

Segundo Raymundo Faoro, a evolução política e econômica da sociedade brasileira devem ser compreendidas a partir da formação e do desenvolvimento de seu núcleo de poder fundamental: o estamento. Nem classe nem grupo econômico, o estamento se define por certo funcionamento peculiar da máquina estatal, de sua burocracia, onde originalmente o patrimônio e os recursos estatais se confundem com o do Rei, onde as principais regras que estruturam e orientam a sociedade são baseadas no direito administrativo e não no direito civil. O estamento político entrincheirado na burocracia estatal, à sombra fresca dos cargos e licenças públicas, atravessou incólume aos séculos e se constituiu como uma ordem política alheia e indiferente aos desígnios da nação. Uma carapaça administrativa que se amolda para sugar e oprimir os habitantes do território que ocupa, indiferente à sua sorte.

Neste trabalho se analisa dois momentos particulares da história brasileira em que o estamento burocrático com sede no Rio de Janeiro foi obrigado, contra a sua vontade, a se manifestar pela força das armas. Esses momentos foram a Guerra do Paraguai, maior movimentação de tropas da história da América do Sul, que envolveu milhares de combatentes dos países do Prata; e a Guerra de Canudos, ocorrida nos sertões da Bahia por motivos religiosos, mas também culturais e políticos. Solano López e Antônio Conselheiro foram figuras dotadas de grande poder carismático, conseguindo reunir em torno se si milhares de pessoas de regiões inóspitas e isoladas do resto do mundo em guerras de resistência e ferocidade incomuns, que resultaram no extermínio dos rebeldes e em milhares de baixas entre os combatentes e as populações civis. Tais líderes tiveram décadas para preparar seus planos protegidos pelas distâncias, e, nos casos das invasões do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul na Guerra do Paraguai e de Canudos no interior da Bahia, pela indiferença, desinteresse e desatenção estatais seculares.6 Ambos se constituíram em desafio real para o Império e para a República pela proporção que tomaram.

Os sertões do Mato Grosso e da Bahia estavam formalmente unidos pela habilidosa diplomacia portuguesa e imperial, que garantia ao estamento insulado no Rio de Janeiro a posse formal de imensos e desabitados territórios, que, no período que esse trabalho abarca: 1860 – 1900 ainda não haviam sido completamente “descobertos”. Essa descoberta se faz pela força, pelo choque das baionetas e pelos tiros de canhão, com o exército impondo a paz pelo massacre dos inimigos.

***
As duas situações de crise estudadas neste trabalho mostram notáveis regularidades entre si do ponto de vista do funcionamento da máquina estatal. A falta de planejamento, que permite à burocracia estatal antecipar problemas, caracteriza uma burocracia reativa, que age célere nos momentos de crise, mas é incapaz de manter ações de longo prazo. A resposta para a crise é rápida. Logo se acumulam recursos em larga escala: mantimentos e voluntários; mas a ação esbarra na falta de coordenação e planejamento, bem como o desconhecimento das regiões onde ocorrem os acontecimentos. O caráter amorfo do estamento se sobressai nessas circunstâncias. Somente quando a força das circunstâncias exige, o poder é dado em caráter excepcional, livre de todas as amarras, para restituir, valor supremo, a ordem.

O caráter intransigente desta Weltanschauung própria do estamento acontece devido à rigidez das normas e regulamentos, impermeável a alterações em sua ordem normativa e inútil para o suceder das coisas no mundo, premiando seus amantes e desdenhando todos os demais, ou seja, aqueles outros todos que também são cidadãos. A forma de intervenção em Canudos lembra em muito a recente intervenção do exército e da marinha no complexo de favelas do alemão, no Rio de Janeiro. A subida dos morros cariocas realizado pelos blindados da marinha, repete o padrão de intervenção das volantes – com a notória diferença do apoio da população no recente episódio – um padrão de intervenção do Estado ainda não superado, e que revela muito sobre o modo de relacionamento do Estado com a sociedade.

Essa forma de Estado felizmente está aos poucos sendo superada, com as populações de regiões marginalizadas do imenso território brasileiro sendo inseridas na civilização pela ação estatal e superando, finalmente, os três séculos de atraso do qual nos falava Euclydes. Mil burros mansos, garantindo a subsistência, são melhores do que mil heróis, ironizava o autor ao explicar quais eram os batalhões que verdadeiramente decidiram a guerra. Se parcela ínfima dos recursos bombardeados na forma de fogo e ferro quente tivessem sido distribuídos de forma mais inteligente pelo Estado, não seriam necessários tantos heróis. Mas para isso nossa história deveria ter sido outra. Um estado mais atuante sobre o seu território, espraiando os benefícios da civilização é o grande desafio que as aventuras dolorosas do Paraguai e de Canudos, entre outras, nos colocaram.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Bem-vindo verão!!!


Essa música é incrível. Para celebrar:

"... Meio no sufoco, meio coca-cola, meio mal da bola, meio inconsequente
Como se no meio da cidade, na velocidade, na saudade, na maldade a toa
Nessa claridade tanta coisa boa se desmancha feito um picolé no sol
E feito um picolé no sol, eu quero estar agora, pra esquecer do mal que ta fora..."

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O direito do mais forte ou o direito universal?

É justo Julian Assange ser preso segundo a filosofia de Hobbes? E a de Kant? Leia o texto abaixo retirado do blog O Biscoito Fino e a Massa para obter elementos para sua resposta.

Wikileaks: O 1º preso político global da internet e a Intifada eletrônica

Julian Assange é o primeiro geek caçado globalmente: pela superpotência militar, por seus estados satélite e pelas principais polícias do mundo. É um australiano cuja atividade na internet catupultou-o de volta à vida real com outra cidadania, a de uma espécie de palestino sem passaporte ou entrada em nenhum lugar. Ele não é o primeiro a ser caçado pelo poder por suas atividades na rede, mas é o primeiro a sofrê-lo de um jeito tentacular, planetário e inescapável. Enquanto que os blogueiros censurados do Irã seriam recebidos como heróis nos EUA para o inevitável espetáculo de propaganda, Assange teve todos os seus direitos mais elementares suspensos globalmente, de tal forma que tornou-se o sujeito mundialmente inospedável, o primeiro, salvo engano, a experimentar essa condição só por ter feito algo na internet. Acrescenta mais ironia, note-se, o fato de que ele fez o mais simples que se pode fazer na rede: publicar arquivos .txt, palavras, puro texto, telegramas que ele não obteve, lembremos, de forma ilegal.

Assange é o criminoso sem crime. Ao longo dos dias que antecederam sua entrega à polícia britânica, os aparatos estatal-político-militar-jurídico dos EUA e estados satélite batiam cabeças, procurando algo de que Assange pudesse ser acusado. Se os telegramas foram vazados por outrem, se tudo o que faz o Wikileaks é publicar, se está garantido o sigilo da fonte e se os documentos são de evidente interesse público, a única punição passível, por traição, espionagem ou coisa mais leve que fosse, caberia exclusivamente a quem vazou. O Wikileaks só publica. Ele se apropria do que a digitalização torna possível, a reprodutibilidade infinita dos arquivos, e do que a internet torna possível, a circulação global da hospedagem dessas reproduções. Atuando de forma estritamente legal, ele testa o limite da liberdade de expressão da democracia moderna com a publicação de segredos desconfortáveis para o poder. Nesse teste, os EUA (Departamento de Estado, Justiça, Democratas, Republicanos, grande mídia, senso comum) deixaram claro: não se aplica a Primeira Emenda, liberdade de expressão ou coisa que o valha. Uniram-se todos, como em 2003 contra as “armas de destruição em massa” do Iraque. Foi cerco e caça geral a Assange, implacável.
Fonte da imagem: http://peregrinacultural.wordpress.com

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A vida colonial vista da Casa Grande

Gilberto Freire tem a interpretação do Brasil mais conhecida no exterior. Fez escola os mitos que criou: a democracia racial, o coração generoso do senhor, o local privilegiado do escravo na vida colonial. Na minha opinião, a principal influência de Freire é Marcel Proust. A história não tem sentido. É um arrazoado de sentimentos gestados na volta da Casa Grande. A casa é o local acolhedor, seguro, protegido e sempre justo. Não existem problemas de classe. Afinal, quem fala é a classe dominante, da sombra fresca do alpendre, deitada em suas redes, vendo os negros trabalharem enquanto se empanturram de doces das negras quituteiras. Evidentemente, essas críticas não são suficientes para desmerecer o trabalho de GF. Mas é difícil engolir que o lugar mais bem nutrido da colônia fosse a senzala. Que o latinfúndio canavieiro fosse uma consequência lógica e inevitável da colonização. Que a escrava sedutora fosse a responsável pela libido elevada do senhor. Juntamente com as posições políticas assumidas posteriormente, como apoiar o golpe de 64, colocam GF, sem injustiças, à direita do espectro político. Enfim, GF é o intérprete que mostra o Brasil que as nossas elites gostam de enxergar: generosa nas mesquinhas condições do meio que ela mesma criou; gentilmente racista, reconhecendo as virtudes das raças à serviço do senhor; inteligente no comércio exterior, cosmopolita em seus berços holandeses e frutas e carnes podres importadas de Lisboa... Seja como for, GF fornece uma interpretação, embora pouco consistente, original e poderosa, do começo da colonização brasileira que deve ser lida.  Segue o último resumo da temporada de intérpretes, que formou ao longo das postagens feitas nesse blog  um mozaico quase bizantino do que é, afinal de contas, o ser brasileiro. 

A empresa de ocupar e colonizar o vasto território brasileiro levada a cabo pelos portugueses, sob as mais rudes condições, foi inegavelmente bem sucedida. O êxito deve ser avaliado, sobretudo, pelas conseqüências geradas. Em especial a unidade territorial, lingüística e cultural de um país de dimensões continentais. Se levarmos em conta o diminuto tamanho da população portuguesa, seu pequeno território e as dificuldades inerentes ao processo de colonização — que leva ao processo de despovoamento da metrópole - o êxito português torna-se ainda maior. Nessa empresa, sustenta Freyre, o português não esteve sozinho. Acompanhado pelo indígena nativo e pelo negro importado para o trabalho, o português, libidinoso e sem orgulho de raça, liderou o intenso processo de miscigenação que resultou na efetiva ocupação do território. A raça mestiça, contendo no sangue o índio, o negro e o europeu, estava em melhores condições de enfrentar as adversidades do clima e da precariedade de condições. Tudo faltava. Em parte devido às adversidades do clima, do solo. Preponderantemente devido às características peculiares da colonização portuguesa: seja pelas suas motivações econômicas, o lucro fácil, a empresa cosmopolita, seja pela Weltanschaung do português. Esse argumento é ilustrado por Freye ao analisar os hábitos alimentares da Colônia.
A comida era escassa e, em geral, de péssima qualidade. Mesmo na Casa Grande, os habitantes da Colônia eram muito mal nutridos. Em minucioso levantamento, Freyre identifica na inadequada alimentação um dos principais obstáculos para a colonização. Destaca o autor duas causas preponderantes: o meio — com solos pouco adequados para as culturas européias tradicionais; e, o homem, liderado a ferro e fogo pelo português, cujo propósito maior da aventura era a busca do lucro fácil, com aversão ao trabalho manual. Com a introdução da cana de açúcar, o quadro não se altera. Agora, em função da monocultura, todos os braços estão ocupados com o cultivo da cana, todas as atenções se voltam para a Europa, de onde se importa carne e frutas, de modo que não resta espaço para outras culturas ou para a criação de gado, tido como ameaça aos canaviais.

Nesse exemplo, Freyre analisa a influência dos dois fatores: o clima e o homem. Ainda que não exclua a importância do meio, uma vez que o solo alcalino impede o cultivo das fontes tradicionais de alimentação européia e que as variedades nativas eram poucas e insatisfatórias para quaisquer padrões civilizacionais, o autor considera como preponderantes para a questão alimentar a raça. Em especial, o pouco interesse português e, em breve, senhorial pela policultura. Curiosamente, repara Freyre, são os portugueses os inventores da plantação em larga escala para exportação. Verdadeiros universos paralelos, a grande lavoura canavieira tornava imprestável o solo para as demais culturas. As distâncias que impunha entre as comunidades faziam com que o gado chegasse magro, sem leite, e o prato permanecesse vazio. Esses fatores são culturais e, portanto, podiam ter sido contornados inteligentemente pelo europeu que se instalava e se misturava com as gentes da terra.
Finalmente, a relativa homogeneidade geográfica, com a inexistência de obstáculos naturais intransponíveis como grandes cadeias de montanhas ou desertos, fez com que a população se distribuísse com hábitos semelhantes pelo território. Isso resultaria numa vantagem, se o propósito do colônia fosse o povoamento. Como não era, a escassez era generalizada, O indígena, com seus hábitos rudimentares, baseado na caça e na pesca, na coivada e no cultivo da mandioca e tabaco não fornecia base material suficiente para a nova civilização que surgia, em grande parte estimulada pelos férteis ventres das índias. Outro fator cultural preponderante, além do trabalho do escravo negro, que vincou o que há de próprio e de mais fundamental na formação original do país.

Fonte das gravuras: scanneadas do meu exemplar, da 3ª ed. de 1938. Desconheço se foram mantidas nas versões mais atuais.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Teoria da Dependência

A teoria da dependência elaborada por Falleto e FHC é vista como uma das principais contribuições teóricas, originais, da América Latina no vasto e maravilhoso mundo das ciências humanas. De fato, um ensaio muito bem escrito e argumentado, mostrando maturidade e vigor, dentro de uma tradição de pensamento gestado na e em volta da USP. Um pensamento aristocrático, de uma elite rica e cosmopolita que tenta seriamente se compreender. Entre suas empresas mais notáveis na busca da autoidentidade está a criação da USP. 
A linhagem direta do pensamento crítico uspiano é Caio Prado Jr, intelectual rico e de muitas qualidades, marxista crítico do marxismo oficial, que tenta mas não consegue entrar na USP. Florestan Fernandes, criterioso estudioso do método nas ciências sociais e orientador de FHC, cuja tese trata da escravidão no Brasil Meridional. O trabalho de FF comentado em post anterior dá a base sob a qual se assenta a teoria da dependência. Assim, antes de fechar a temporada de intérpretes com o libidinoso Gilberto Freyre na próxima semana, o rigoroso, aristocrático, original e controverso sociólogo FHC.
A propósito. Uma leitura atenta do sociólogo não apresenta contradições com a prática do político. Ele fez de maneira mais articulada e com mais consciência de classe o que nossas elites sempre fizeram: se associar.

A estagnação econômica do início dos anos sessenta constituiu um importante desafio teórico para a compreensão da dinâmica econômica e social da América - Latina. De fato, a crise econômica e seu desenrolar político e econômico foram surpreendentes, já que jogou por terra as principais interpretações vigentes, representadas pelos expoentes do pensamento da CEPAL e do Marxismo. Ambas as correntes haviam apresentado argumentos para demonstrar as difíceis relações entre o centro e a periferia do sistema capitalista, bem como para ressaltar que o subdesenvolvimento devia-se aos parâmetros estruturais e à dependência das economias da AL. FHC considera que ambas as correntes foram importantes marcos para a compreensão da especificidade das economias da região. Contudo, o diagnóstico cepalino não permitia entender por que houve o “Milagre”, crescimento com concentração de renda. Já o marxismo oficial – diferente de Caio Prado Jr - se restringia a denunciar o imperialismo no plano internacional, enquanto pretendia realizar uma aliança dos trabalhadores com os empresários nacionais, que se mostraram contrariamente ao esperado por eles, apoiadores do golpe. Ambas as correntes não percebiam, segundo diagnóstico de FHC e Falleto, os condicionantes políticos e econômicos internos aos países da periferia que desempenharam importante papel nos desdobramentos econômicos e políticos sofridos pela região, em especial o estreitamento dos laços de dependência devido ao avanço da industrialização da periferia associada aos capitais internacionais.

No primeiro momento da industrialização por substituição de importações, chamado pelos autores de modelo latino-americano de desenvolvimento para dentro, os países da região foram beneficiados pelos termos de intercâmbio favoráveis e pela limitada participação da população nos benefícios do desenvolvimento. Contudo, superada a fase fácil do PSI, a fase seguinte do desenvolvimento, que requeria a criação dos setores tecnológica e economicamente mais significativos da indústria de bens intermediários e de capital, não teve fôlego para avançar somente com as forças internas, endógenas, às economias e sociedades latino-americanas. Estas não haviam promovido as reformas político-estruturais profundas requeridas para avançar para fase mais complexa do PSI, onde maiores inversões de capital e de tecnologia são necessárias, preservando espaço e poder para largos e influentes setores arcaicos da sociedade. A antiga aliança desenvolvimentista é desfeita quando o PSI avança para setores econômicos mais complexos e intensivos em capital, com protestos dos setores industriais da primeira fase, chamados tradicionais, assim como pelos setores urbano-industriais, vítimas das tecnologias modernas, mais produtivas e poupadoras de mão-de-obra.
A partir desse ponto de inflexão, o cerne mesmo do sistema industrial na periferia aparecerá cindido em diferentes grupos e classes sociais: o proletariado e empresariado moderno, por um lado; e, por outro, os agentes econômicos tradicionais, elementos dinâmicos da fase anterior, como produtores e exportadores, bem como os excluídos da antiga fase que permanecem excluídos no novo arranjo de forças. Desse modo, a dinâmica social e política da nova fase do desenvolvimento das economias dependentes-associadas deve ser buscada no enfrentamento e nos ajustes entre os grupos, setores e classes que gradualmente redefinem seus papéis econômicos e sociais. P.161.
O marco dessa nova situação de desenvolvimento se encontra na integração ao mercado mundial das economias industrial-periféricas, cujas inserções têm um significado bastante distinto do da fase anterior, quando as economias latino-americanas ainda estavam sob o signo da exportação de bens primários. A vinculação das economias periféricas ao mercado internacional se dá nessa nova fase pela mudança de natureza do capital estrangeiro investido. Os investimentos estrangeiros passam a se dar de forma direta, com a instalação de unidades industriais na periferia, o que leva a uma noção diferente de dependência – agora sob o predomínio do capitalismo industrial monopolista. Esse tipo de desenvolvimento continua supondo heteronímia e desenvolvimento parcial e não autonomia e desenvolvimento pleno (como supunha a CEPAL), devido tanto ao fato dos centros de decisão de investimento se situarem no exterior, quanto ao fato de que esses investimentos visarem a atender aos mercados consumidores internos dos países periféricos, inserindo-os de maneira subordinada aos padrões de consumo e regras de negócio dos países centrais.
Nesses moldes, o desenvolvimento depende da capacidade do país importar bens de capital e matérias-prima complementares, bem como exige a internacionalização das condições do mercado interno, o que leva ao estabelecimento de preferências e padrões de consumo copiados dos países centrais. Essa revolução industrial originada “de fora”, mas consentida e desejada pelas classes e grupos dominantes “de dentro”, reorganiza administrativa, tecnológica e financeiramente a sociedade, reordenando as formas de controle social e político. Neste novo tipo de desenvolvimento, os mecanismos de controle da economia nacional escapam parcialmente ao controle interno na medida em que certas normas universais do funcionamento de um sistema produtivo moderno são exigidas, levando à padronização e ordenamento supranacional dos mercados. Assim, à medida que o ciclo de realização do capital, por natureza concentrador, se completa no âmbito interno em função da grande unidade produtiva, de tecnologia invariavelmente estrangeira, o sistema econômico – as leis de mercado – impõe à sociedade suas normas naturais, restringindo o âmbito e a eficácia autônoma dos grupos locais.
Nessa forma específica de desenvolvimento, os mecanismos de mercado são estimulados especialmente pelas relações entre os produtores – entre as próprias empresas – que se constituem como os consumidores mais significativos para a expansão econômica. Assim, para aumentar a capacidade de acumulação desses “produtores-consumidores” é necessário conter as demandas reivindicatórias das massas, bem como intensificar a exclusão social das camadas sociais importantes do período anterior que não puderam encontrar espaço nesse novo arranjo social. Desse modo, há uma dupla subordinação, desenvolvimento restringido e dependente. Seja pela supremacia do setor monopolista, moderno, intensivo em tecnologia e capital, pertencente às burguesias internacionalizadas, seja pelas novas formas de dominação política que ele instaura. O setor industrial moderno e o setor agro-exportador industrializado podem manter-se e expandir-se em um ritmo relativamente lento, sem que sua presença alcance modernizar o conjunto da sociedade. Dessa forma, sob um capitalismo dependente, a industrialização permitiu o desenvolvimento de sociedades periféricas industrializadas, mas subordinadas ao capital e as preferências estrangeiras, copiadas avidamente pelo setor diretamente beneficiado desse estado-das-artes. O resultado foi um modelo capitalista baseado na exclusão social e na restrição ao desenvolvimento das forças autônomas do país. 

domingo, 28 de novembro de 2010

Pelo menos temos o SUS...


Falem o que falarem do SUS. Sou fã. Vi pessoalmente VÁRIAS pessoas serem salvas devido a sua existência. Crianças nascerem. Cirurgias de urgência complicadas. Semanas de internação. Tudo modesto, mas muito funcional E humano. Como, peloamordedeus, deixar os serviços de saúde aos cuidados do mercado? Melhor se queixar para um político que não olha apenas preços e quantidades.  

Um estudo recente da Faculdade de Medicina de Harvard indicou que quase 45 mil estadunidenses morrem anualmente (um a cada doze minutos) principalmente porque não têm seguro de saúde. Mas para o grupo pressão das empresas, a única tragédia seria a possibilidade de uma verdadeira reforma do sistema de saúde. Em 2009, as maiores empresas do setor destinaram mais de 86 milhões de dólares à Câmara de Comércio dos Estados Unidos para que esta se opusesse à reforma do sistema de saúde. Este ano, as cinco maiores seguradoras do país aportaram uma soma de dinheiro três vezes maior tanto para candidatos republicanos como para democratas com a intenção de fazer retroceder ainda mais a reforma da saúde. O representante democrata por Nova York, defensor do sistema de saúde público, declarou no Congresso que “o Partido Republicano é uma subsidiária que pertence por completo à indústria de seguros”.

Dica do Marco Weissheimer.

Em tempo: Nossos meios de comunicação prestam enorme desserviço ao denegrir sistematicamente o importante papel que um sistema de saúde como o nosso desempenha para a sociedade.

sábado, 27 de novembro de 2010

Ciência Regional

Ainda falta aplicá-la aos nossos parâmetros estruturais:


Walter Isard’s research contributions are large and diverse. His interests in regional and urban phenomena were formed during his graduate studies, leading to his first major book, Location and Space Economy (1956). Next, he initiated research on the economic and social consequences of atomic power and industrial complexes and intensified his research on methods of regional and urban analysis, including interregional interindustry models, interregional linear programming models, and migration and gravity models. This resulted in his second major book, Methods of Regional Analysis (1960), later thoroughly updated as Methods of Interregional and Regional Analysis (1998). During the 1960s Isard turned to more theoretical pursuits related to individual behavior and decision making as well as general equilibrium theory for a system of regions as presented in his third major book, General Theory (1969). Concurrently, he and his students undertook a major interindustry study of the Philadelphia region and other empirically-oriented research.

Dica do sempre bem informado: Leonardo Monastério

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Florestan Fernandes e a Revolução Burguesa no Brasil

Dialético - a palavra que melhor define o pensamento de FF. Filho de empregada doméstica, pesquisador incansável, criativo, líder, orientador de FHC (sim, aquele mesmo), legou vasta e admirável obra sobre diversos aspectos da sociedade brasileira, bastante desconhecido do grande público. O único professor que eu escutei falando (e bem) dele (não só aqui no Sul) foi o Pedro Fonseca. Claro, na USP devem se encher dele...
Quase terminando a estação dos intérpretes do Brasil, segue a Revolução Burguesa::


A ideia-chave para entender a Revolução Burguesa em FF é processo. Revolução como processo lento, gradual e de acomodação. “Revolução” é um conceito tradicionalmente visto como um ponto determinado no tempo onde ocorre uma mudança qualitativa. Mostrar que a revolução burguesa no Brasil foi um processo histórico é um ato de criatividade de FF. Todos os sistema capitalistas instituídos nos diferentes Estados-Nação têm que passar por um processo de construção histórica. No Brasil ele se deu de forma gradual, lenta, difícil, eivado de idas e vindas, conflituoso, se dando ao longo do tempo, assimilando e negando o legado do Império, bem como a inserção subordinada do país ao capitalismo internacional. A questão que se coloca para FF é determinar as continuidades e rupturas desse processo durante o período de constituição da ordem burguesa no país, marcada pelo gradualismo e pelo processo de acomodação, cuja inserção dependente no grande circuito do capital internacional deixou profundas marcas na constituição de nossa ordem burguesa.
Do ponto de vista metodológico, FF utiliza o método dialético, e analisa o concreto e específico do país frente ao conceito abstrato de "Revolução". Embora abarcadas pelo mesmo conceito, “Revolução Burguesa”, cada uma das revoluções burguesas presenciadas até hoje, mesmo que tenham largos traços comuns, ocorreram em países com contextos históricos concretos e específicos, resultando em diferentes interpretações e alcances dos efeitos da nova ordem social comandada pela burguesia.
Houve capitalismo no Brasil? Questão central para entender o processo da Revolução Burguesa e a interpretação que FF lhe dá. A literatura sobre esse assunto no Brasil se dividia em posições antagônicas. Autores como Caio Prado Jr. defendiam que sempre houve capitalismo no Brasil. Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães, representantes do 'marxismo oficial', consideravam que nunca houve. CPJr argumenta que sempre houve capitalismo, porque o ciclo da cana-de-açúcar, por exemplo, insere o país no circuito internacional do capital desde o seu nascimento, recusando, contudo, a aceitar que o senhor de engenho seja um capitalista. Este é visto como um agente para viabilizar a acumulação da metrópole, não se constituindo numa classe para si, ie., sem consciência. O seu excedente não é lucro. De outra parte, o marxismo oficial defende que nunca houve capitalismo e que a tarefa histórica a ser realizada é livrar o país do feudalismo. FF recusa ambas as teses.
Para este Intérprete, a Revolução Burguesa é uma relação dialética entre o sempre e o nunca do capitalismo no Brasil, que se constituiu como um processo dotado de feições próprias, com suas particularidades e especificidades históricas e sociais, cuja finalidade era o desenvolvimento capitalista e a dominação burguesa. Assim, como em Faoro, também em FF existe uma mistura entre economia e política, diferente do marxismo tradicional, já que para ambos os autores a estrutura econômica não se movimenta por si só. O capitalismo não é visto como uma coisa natural, cujas classes e modo de funcionamento apareceram espontaneamente. Ao contrário. O aparecimento de uma classe social voltada ao risco e à acumulação é uma novidade histórica de grandes proporções. Essa sociedade de classes passa a se constituir hierarquicamente, moldando as novas relações sociais por razões econômicas, mas não se livrando totalmente das antigas ideias de honra, poder e prestígio que animavam a nobreza e o Império.
Finalmente, a Revolução Burguesa ocorreu não apenas nos modos de produção, mas na própria mentalidade e motivação dos agentes sociais, cujos principais expoentes eram o Cafeicultor Capitalista e o Imigrante. O primeiro, por sua consciência de classe, importância e dinamismo econômico, que levou a consequente defesa dos seus interesses em âmbito nacional, com importantes consequências para a ordem econômica. O segundo, por já vir adestrado ao trabalho assalariado e dotado de mentalidade capitalista. Os móveis capitalistas do raciocínio econômico aos poucos solaparam o antigo regime e a velha ordem econômica. A busca do lucro imprimiu novo dinamismo à sociedade, passando aos poucos a ditar os florescentes valores sociais e econômicos, gradualmente burgueses em pensamentos, palavras e ações. É o progresso dentro da ordem– coincidentemente a lição positivista, que se verifica no caso da Revolução Burguesa brasileira. Processo de longo curso, iniciado ainda sob a dominação colonial, a Revolução Burguesa lentamente se consolida. De fato, a estrutura da terra, a sociedade agrário/exportadora, a escravidão, a centralização monárquica são características de permanência e que, gradativa, nem sempre totalmente, vão cedendo espaço aos valores e comportamentos burgueses ao longo de todo o século XIX, sendo consolidado somente no século XX. O processo que começa em 1808 com a abertura dos portos só se encerra no Estado Novo com a 'Queima das Bandeiras', quando a ordem e a dominação burguesa estão finalmente incontestes.  

terça-feira, 16 de novembro de 2010

1 Dia = 24h a menos

Diariamente, aproxima-se o homem 24 horas da morte. Mas, ao ver um homem, não sabemos exatamente quantos dias ele durará. Isto não impede, entretanto, às empresas de seguro tirarem, sobre a vida média do ser humano, conclusões bastante acertadas e, o que mais lhes importa, muito lucrativas. O Capital p. 239.

sábado, 13 de novembro de 2010

Perspectivas para economia brasileira

Pedaço da prova de Economia Brasileira sobre as perspectivas da economia brasileira.

[C]omo notam Stiglitz, Cimoli, Nelson e Dosi, os países frequentemente se deparam com trade-offs entre eficiência alocativa, inovativa e crescimento, de modo que o maior desafio a um país com imensos potenciais e relativamente distante da fronteira tecnológica deve ser saber equacionar esses três fatores, com justiça social (que implica estabilidade macroeconômica), na busca do seu desenvolvimento de longo prazo. De fato, os analistas estudados se dividem com relação às prioridades.

Carneiro, Coutinho e Barbosa consideram que o país deve acelerar o desenvolvimento dos setores intensivos em tecnologia, até mesmo para manter o superávit em conta corrente. O maior crescimento relativo dos emergentes implica no surgimento e crescimento de novos mercados, que permite o estabelecimento de novas relações comerciais e, assim, de novas oportunidades de comércio e de investimento.
Contudo, o crescimento da China deve ser visto com reservada cautela, uma vez que o baixo preço dos produtos chineses e a alta demanda de matérias-primas no mercado mundial, podem ter múltiplos efeitos indesejados. A ameaça de desindustrialização, tornando o Brasil um exportador de commodities e importador de bens manufaturados é uma realidade que pode se confirmar num futuro próximo se as tendências verificadas persistirem. Do mesmo modo, as novas descobertas de petróleo, as grandes jazidas minerais e a grande quantidade de terras férteis podem resultar na “maldição dos recursos naturais”, se o país se concentrar apenas naquelas mercadorias ou atividades em que atualmente possui vantagens comparativas. Ou seja, o simples crescimento do produto no curto prazo puxado pela exportação de bens primários pode penalizar severamente a inovação, de modo que a ponderação adequada de crescimento e inovação se faz necessária. Do mesmo modo, autores como Franco e Giambiagi ressaltam a importância de se manter políticas de estabilização, que trouxeram inegáveis benefícios ao conjunto da sociedade. Contudo, as políticas ortodoxas em parte tolhem os investimentos em inovação – dado o trade-off entre estabilização e inovação, recolando escolhas que devem ser resolvidas tanto na esfera econômica quanto na política. Em última análise, não existem soluções prontas especialmente para a questão sempre presente das fontes de financiamento para o crescimento. Os trade-offs citados impõem aos agentes, tanto públicos quanto privados, determinar quem e como se pagará para resolvê-los, a fim de moldar o Brasil das próximas décadas. Questão que somente será resolvida nos casos particulares, onde conta mais a prudência do policy maker do que a sabedoria do cientista.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cenas explícitas de Brasil

Um pedaço dos Donos do Poder que trata das eleições...

"O poder - a soberania nominalmente popular - tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos, reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como bom príncipe, dispensários de justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções que ele não formulou." p. 837.

O capitalismo de Estado e o estamento burocrático

No último capítulo de sua grande obra, Os Donos do Poder, Faoro retoma o seu argumento geral: características estabelecidas pela Revolução de Avis, no distante ano de 1370 no jovem reino de Portugal, determinaram a estrutura profunda da organização política e social brasileira, dando origem a uma forma peculiar de capitalismo, baseado na propriedade e na empresa estatal, o capitalismo político ou politicamente orientado. O poder político deste tipo específico de capitalismo, próprio da cultura luso-brasileira, se manifesta no estamento burocrático, estrutura de poder impermeável e autoritária de uma minoria, uma carapaça burocrática, alheia e indiferente ao resto da sociedade, que moldou decisivamente o Estado e a sociedade ao longo dos séculos. Inicialmente assentado no patrimonialismo pessoal (onde o rei era proprietário de todas as terras e das principais atividades de comércio), o capitalismo de estado passa a se assentar gradativamente sobre o patrimonialismo estatal, adotando o mercantilismo como técnica de operação da economia, onde o Estado se põe a frente dos interesses econômicos e dos negócios capitalistas.
Entre as principais características desse Estado mercador, Faoro destaca o apego à aventura e ao lucro fácil como valores que levaram, num primeiríssimo momento, à expansão, cuja aventura ultramarina está entre os fatos mais notáveis. O rei era o principal investidor e o principal beneficiário dessas aventuras, de caráter nitidamente mercantilista. O constante comércio e contato com o exterior, características peculiares dessa forma de Estado, criou uma sociedade aberta aos estrangeiros e às novidades, embora não seja ela mesma criativa nem proativa. Essa sociedade, pré-capitalista (mercantilista e não medieval), se remodela com o advento do capitalismo industrial, se amolgando às mudanças tecnológicas e políticas trazidas de fora, sem perder seu caráter e estrutura. No novo Estado industrial, as atividades privadas, quando de vulto, são realizadas pelo Estado, tornando-se uma “extensão da burocracia oficial”, aproximando o campo estatal do campo econômico, onde a dinâmica do mercado se altera “em direção ao mercado administrativo, com demandas seletivas, de caráter militar e político.” P. 831. Faoro também destaca a tendência especulativa que move o estamento, fazendo com que a economia funcione aos saltos, afeiçoado ao ganho fácil e às soluções miraculosas, avesso ao trabalho.
O Estado mercador, capaz de comerciar, desafia as estruturas de análise teórica tradicionais, pois traz em seu bojo um quadro administrativo com interesses próprios, uma elite letrada e versada na burocracia, cujo expoente é o bacharel, que não se confunde nem se reduz às classes sociais marxistas. Tampouco esse tipo específico de Estado contempla a perspectiva liberal, uma vez que a iniciativa privada, onde o valor e a ambição do indivíduo determinam o êxito e a ascensão social, não se coaduna com a figura típica do estamento: o funcionário, dócil e servil aos desígnios de seus superiores. Segundo Faoro, a distinção social só estava aberta àqueles que, tendo seu currículo e carreira aprovados de cima para baixo, seguissem uma espécie de ética confuciana, do bom funcionário, nos assuntos do Estado.
Desse modo, o poder tem um reduzido círculo de donos, impermeáveis e indiferentes à nação e à sociedade, cuja organização burocrática resiste incólume a passagem do tempo. Adicionalmente, tudo provém e tudo se espera desse estado provedor, detentor das iniciativas e dos negócios. Nessa perspectiva, “o chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário” p. 837. Esse chefe, seja quem for, se adapta às exigências do estamento, utilizando os instrumentos políticos derivados do controle do aparato estatal, seja por adesão, seja pela força, para dirigir o Estado, bem como os seus negócios, orientando politicamente o capitalismo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Celso Furtado: teórico do subdesenvolvimento

A inserção do país no sistema internacional enquanto economia periférica, importadora de tecnologia dos países centrais, trazia, segundo Furtado, importantes consequências para a estrutura econômica, cujas distorções estruturais eram causa da relativa estagnação do Brasil no início da década de 60. Os argumentos de subconsumo defendidos por Furtado se constituiam num arcabouço teórico sólido, que justificavam de maneira coerente a crise a partir de uma explicação estruturalista, vendo em questões estruturais ligadas ao funcionamento da tecnologia importada e na cópia dos padrões de consumo dos países centrais razões para o baixo crescimento da economia.
Furtado parte da constatação de que o subdesenvolvimento é um processo que existe concomitantemente aos países desenvolvidos. Os países subdesenvolvidos copiam padrões de consumo do centro, o que leva a um funcionamento peculiar do papel da tecnologia, dependente. Num primeiro momento, apenas as elites dos países em desenvolvimento podem ter acesso aos produtos de consumo importados. Neste modelo, a concentração de renda é funcional para que as elites copiem os padrões de consumo dos países centrais. Num segundo momento, os produtos importados passam a ser produzidos localmente com tecnologias de ponta - há processo de substituição de importações. Essas novas tecnologias importadas, poupadoras de mão-de-obra e intensivas em capital, subutilizam o fator abundante, o fator trabalho, vis-à-vis o fator escasso, o capital. Desse modo, segundo o diagnóstico de Furtado, o Brasil se encontrava numa situação em que existia população, mas não mercado  consumidor que permitisse o desenvolvimento endógeno das forças produtivas.
O caráter altamente concentrado da renda e da propriedade fundiária fazia com que a renda disponível não permitisse os incrementos de escala ótimos para o desenvolvimento de produtos industriais. Como forma de resolver os problemas de subconsumo gerados pelas características de economia dependente e periférica, Furtado propunha reformas estruturais que aumentassem o tamanho do mercado interno, enxergando em medidas voltadas à redistribuição de renda, como reforma agrária, aumentos reais de salário e reforma educacional formas de solucionar a crise de subconsumo, já que essas provocariam no longo prazo alterações nos parâmetros estruturais da economia brasileira.

Caio Prado Jr e a revolução brasileira

Em Revolução Brasileira, Caio Prado Jr (CPJr) faz a primeira grande crítica, sistemática, ao marxismo oficial. Entre os principais pontos de discordância, destacam-se uma crítica geral à teoria marxista da revolução, pois essa se elaborou sob o signo de abstrações, isto é, em conceitos formulados a priori e sem consideração pelos fatos e pelas realidades históricas particulares, em especial, sem atentar aos condicionantes da evolução histórica do Brasil. Como conseqüência, a teoria do marxismo oficial não tem aplicabilidade nem teórica nem prática ao debate público nacional, fazendo com que as ações políticas sejam guiadas pelo sabor das circunstâncias e não por balizas teóricas consistentes.

No segundo capítulo, CPJr tece duas críticas metodológicas ao marxismo oficial.

A primeira considera um equívoco a concepção “etapista” da história brasileira, que, à semelhança do que ocorreu na Europa, deveria também ter acontecido aqui. Ou seja, do ponto de vista de sua evolução histórica, nesse ponto de vista, o Brasil começou com o regime de escravidão, passou pelo feudalismo e, finalmente, chegou ao regime capitalista. Segundo Nelson Werneck Sodré, o que marcaria o feudalismo brasileiro seriam as relações “pessoais” e não as relações contratuais. Dessa maneira, o PCB admitia que ainda havia resquícios de feudalismo no Brasil, identificando neles um dos principais desafios a serem superados pelo país.

CPJr critica esta visão “etapista” por defender que, desde o seu início, a história do Brasil foi capitalista. Como era a produção voltada ao mercado externo com o objetivo de auferir lucros, o objetivo da empresa colonial portuguesa no Brasil, CPJr considera que foi o sistema capitalista que forjou o sentido da história brasileira. Desse modo, é secundário discutir influências pretensamente feudais. A questão metodológica central é discutir o que define o sentido da colonização, procurando analisar a maneira como a dinâmica capitalista se deu no Brasil. Assim, instituições (em especial, a escravidão), que no marxismo oficial se opõem ao capitalismo, segundo a interpretação de CPJr são capitalistas, pois o seu objetivo último era a busca de lucros num sistema de produção altamente integrado com o comércio internacional – fatos completamente estranhos à compreensão tradicional do que seja o feudalismo.

O segundo ponto de discordância de CPJr relaciona-se à noção de imperialismo do marxismo oficial e a sua conseqüente proposição de luta contra ele. CPJr argumenta que essa interpretação coloca sob o mesmo conceito países muito diferentes, ignorando as imensas diferenças sociais, culturais e políticas existentes entre eles. No Brasil, diferente dos países asiáticos, antigos e populosos, não existia uma elite nacionalista que foi ameaçada e invadida por forças imperialistas. A burguesia que se forma no Brasil desde o seu início já nasce associada à burguesia internacional, de modo que ela não possui uma bandeira nacionalista.

A crítica à pretensa luta contra o imperialismo brasileiro, leva CPJr a se mostrar cético em relação à busca da autonomia do país pela via do processo de substituição de importações, e, assim, contra a concepção então em voga na CEPAL, antecipando as teorias da dependência que buscam nas características históricas da formação de nossas elites elementos importantes para explicar nosso subdesenvolvimento.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Conselho Astuto

Conselho de Alvaro Paez ao Mestre de Avis, no século XIV. Segundo Raymundo Faoro, uma das estratégias políticas peculiares da cultura luso-brasileira que atravessaram seis séculos:

"Senhor" - recomendava o astuto conselheiro - "fazei por esta guisa: Dai aquilo que vosso não é, e prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não errou, e ser-vos-á mui grande ajuda para tal negócio em que sois posto"

sábado, 9 de outubro de 2010

Interpretações do Brasil

O espaço da sala de aula em geral é muito desvalorizado. Professores repetem conteúdos há anos escutados por sonolentos e desinteressados estudantes. Felizmente este espaço pode ser muito mais interessante e formador, pois interpretar o Brasil também é fazer uma espécie de terapia, individual e coletiva.
Abaixo, um pedacinho do programa da disciplina Interpretações do Brasil, sob batuta do professor Pedro Fonseca:

II- OBJETIVOS

O curso visa discutir e comparar as diferentes visões e interpretações sobre a economia e a sociedade brasileiras, através da abordagem de autores que, por sua contribuição, marcaram e marcam o debate intelectual do país.

III- CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Estudo das contribuições de: Caio Prado Jr, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Gilberto Freyre, Ignácio Rangel e Sérgio Buarque de Holanda.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A história social do presente

Não sei se já foi escrita, mas o mote me parece ótimo: estudar a evolução social e histórica do ato de presentear. O que é bom ou ruim ganhar ou dar de presente variou e varia muito, com sutilezas muito curiosas. Em Caracas, por exemplo, dar presentes para os colegas de trabalho quando se é novo na empresa é uma obrigação.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Para além da antropofagia

O desenvolvimentismo, enquanto corrente de pensamento econômico, não é importado, regurgitado e cuspido. Não pertence ao longo cabedal de pensamentos que, oriudos do estrangeiro, por aqui se fixaram como cópias estranhas de suas fontes. Ao contrário, é uma contribuição original do pensamento brasileiro que não obedeceu à lógica de introjetar uma cultura alienígena. Mesmo que o liberalismo, o positivismo e outros ismos sejam influências importantes para sua formação, o raciocínio desenvolvimentista que guiou os rumos da economia brasileira entre 1930 e 1980 foi e permaneceu original, fornecendo exemplos avant la lettre de teorias econômicas posteriormente escritas. O exemplo clássico é o das políticas de sustentação da renda praticadas por Vargas no início da década de 30, que anteciparam, na prática, os principais resultados teóricos da teoria geral de Keynes, publicado em 1936.