quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quem quer assumir o iluminismo?

Abaixo, palhinha da interessante crítica do Not Tupy sobre a visão que nós, os brasileiros que temos computadores, acesso à Internet e tempo para bloggar, - enfim, a elite - temos de nós mesmos. Não concordo, contudo, com a inferência feita pelo autor de sua análise para suposto uso por parte de nossos "marxistas". A inferência é inválida por vários motivos que não convém comentar aqui, mas o post Auto-etnografia faz uma análise lúcida do funcionamento de nossa dinâmica social que merece ser lido.

(...) É o classismo do Brasil, o "sabe com quem está falando?", o fato que pobres e classe-média-pra-cima se enxergarem como coisas diferentes a pior mácula da cultura brasileira. Uma chaga que está sim ligada ao racismo, mas vai além dele e é mais perniciosa que ele, pois é o que impede que os pobres sintam-se cidadãos e acreditem em ascenção social honesta, causando assim a inveja destrutiva, a criminalidade e, em última instância, o subdesenvolvimento.

É sintomático o fato de usarmos termos como "tupiniquim" e "antropofagia", fazendo graça com o suposto status selvagem do povo, do qual, por ironizarmos, nos excluímos. Essa atitude é herdeira da colônia e há muitos motivos para não ser contestada seriamente. Põe-se em jogo os interesses de nossos "barões", esses que estão muito confortáveis em seu papel de sêo-dotô-benfeitô, a imagem do nobre jogando moedas da carruagem ao povo famélico - para o que deve existir eternamente nobres e povo famélico.

Quem quer assumir o Iluminismo quando isso poderia destituir os privilégios de nossas castas dos políticos, funcionários públicos, intelectuais e artistas?

(...) Mais

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Em busca do esclarecimento

Excelente iniciativa de César Schirmer, do aNImOT para divulgar informações relevantes para pessoas que ainda não acompanham a Blogosfera, mas procuram (e não encontram) informação de qualidade na grande imprensa. Que o BlogoPress prospere e frutifique!

Meu sogro gosta de acompanhar as notícias, mas não suporta os comentaristas direitistas abusados que aparecem na TV ou no rádio, nem notícias distorcidas. E ele não acompanha a internet. A situação dele é igual a de vários que só usam rádio, TV e jornais como meios de comunicação. É para esses que dirigo o BlogoPress.

A idéia é simples: recorto e colo em um documento do BrOffice trechos das notícias e opiniões mais interessantes que acho na internet, salvo como PDF, imprimo uma cópia para meu sogro, e deixo o PDF no ar para que outras pessoas imprimam para outros sem-internet que queiram informação viva e confiável. Com isso, dou-lhes uma amostra do que há na rede, e os convido a participar.

O BlogoPress não é dirigido para quem já acompanha a internet e os blogs. Seu público são as pessoas que ainda não frequentam esse mundo. Você pode instigá-las a vir para cá imprimindo algumas cópias do BlogoPress, ou fazendo sua própria seleção, e distribuindo as cópias impressas para vizinhos, parentes, amigos, colegas de trabalho ou colegas de escola.

A idéia fundamental por detrás do BlogoPress é instigar pessoas de todas as idades a frequentar a internet, e usá-la como meio de informação. Uma vez que essas pessoas tenham contato com o material que circula na rede, suas visões sobre o material que rola em rádios, TVs e jornais se modificará.

Endereço: http://blogopress.blogspot.com/

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Economia ambiental e ineficiências alocativas

Abaixo, trecho de artigo de Lawrence Summers, economista-chefe do Banco Mundial, publicado no The Economist, na edição de 6 de fevereiro de 1992, que trata das ainda atuais ineficiências alocativas de lixo e outros materiais poluidoras entre os países desenvolvidos e os "em desenvolvimento" e a posição que o Banco Mundial deveria adotar frente ao problema.

"(...) não deveria o Banco Mundial estar encorajando mais migração das indústrias poluidoras para os países menos desenvolvidos ? Três razões vêm-me ao espírito:

1) A medição dos custos da poluição prejudicial à saúde depende dos ganhos auferidos com uma maior mortalidade. Levando-se em conta esse ponto de vista, uma determinada quantidade de poluição prejudicial à saúde deveria ser gerada no país com os menores salários. Eu penso que a lógica econômica por trás do despejo de um carregamento tóxico no país de menores salários é impecável e deveríamos levá-la em conta.

2) Os custos da poluição deverão ser não-lineares, já que os acréscimos iniciais de despesas com a poluição provavelmente têm um custo muito baixo. Sempre achei que os países subpovoados da África eram extremamente ´subpoluídos´; a qualidade do ar é, provavelmente, ineficientemente baixa comparada com a de Los Angeles ou com a da Cidade do México. Apenas o lamentável fato de que tanta poluição é gerada por indústrias não-deslocáveis (transportes, geração de eletricidade) e que os custos de transporte por unidade dos detritos sólidos sejam tão caros impedem um comércio de poluição atmosférica e lixo aumentando o bem-estar mundial.

3) A demanda por um meio ambiente limpo por razões estéticas e de saúde provavelmente terá uma grande elasticidade de ganhos. A preocupação com um agente poluidor que causa alteração de um em um milhão de probabilidades de um câncer da próstata do que em um país onde a mortalidade das crianças de até 5 anos é de duzentas por mil. Além disso, uma grande parte das preocupações com as emissões de poluentes industriais é com as partículas que dificultam a visibilidade. Essas partículas podem ter um impacto direto sobre a saúde muito pequeno. É claro que o comércio com bens que corporificam as preocupações com a poluição estética pode ser favorável ao bem-estar. Enquanto a produção é deslocável, o consumo de ar puro não é comercializável.

O problema com os argumentos contrários a todas essas propostas de mais poluição nos países menos desenvolvidos (direitos intrínsecos a certos bens, razões morais, preocupações sociais, falta de mercados adequados, etc) poderia ser invertido e usado com maior ou menor eficiência contra qualquer proposta do Banco Mundial de concessão (de verbas)."

Comentário do Gustavo Schirmer, de onde veio a pérola, dá para discordar?

Temos aí tudo o que é necessário para um economista neoliberal: análise racional, uso dos termos corretos (eficiência, elasticidade, etc), completo desprezo pelos seres humanos que não lhe possam prover vantagens. Esse grande economista não só permanece à solta, como ainda consegue cargos influentes. Qual é o limite para a demência neoliberal?

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Kant em quadrinhos



Tradução
:

Q1 - Strizz: Sensacional!
Q2 - Chefe: Senhor Strizz, por favor, examine esse orçamento. A coisa é urgente.
Q2 - Strizz: Kant, chefe!
Q3 - Strizz: Eu viverei de outra maneira. Descobri que sou culpado de minha própria menoridade!
Q4 - Strizz: Sabe o que é menoridade? A incapacidade, de seu próprio entendimento orientar-se sem a instrução de outro. Por exemplo, seu chefe. Sabe o que é ser culpado? Quando não falta entendimento, mas coragem, para trabalhar sem a direção do chefe.
Q5 - Strizz: O meu entendimento me diz: devagar se vai ao longe! Comece o dia calmamente! Evite stress! A minha coragem me diz: diga ao chefe!
Q6 - Strizz: Esse Kant! Gente fina! Eu vou sempre andar com ele!
Q6 - Chefe: hm.. faz tempo que eu li Kant...
Q7 - Chefe: Pelo que eu me lembro, ele não pregava a preguiça de jeito nenhum. Não eram os conceitos de dever e de atenção à lei moral os conceitos essenciais da Fundamentação da Metafísica dos Costumes?
Q7 - Strizz: ohhh... não cheguei a ver isso...
Q8 - Chefe: Espere um pouco... talvez isso esteja por aqui...
Q9 - Chefe: Aqui! "Dever é a necessidade de ação por atenção à lei!" Não seria em seu caso a atenção ao contrato de trabalho? Assunto encerrado! Me entregue o orçamento em minha mesa em uma hora!
Q10 - Strizz: Chefe! Então a gente não pode filosofar! Que citação foi encontrada! Eu também consigo! Aqui! Sua única garantia de felicidade é o dever. O que isso significa?
Q11 - Chefe: Eu não tenho nada contra que tu estudes Kant! Mas em casa! Se você me provar que é para isso, se depois do almoço você não tiver nada para fazer, tire uma semana de folga!

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Questões para concurso aleatório em filosofia

Sugestão de uma prova de filosofia moderna no formato concurso aleatório:

Aguarde o sorteio e responda somente à questão sorteada.

1) Por que Kant passeava todos os dias no mesmo horário? Quem foi o responsável pelo seu único atraso? Relacione esse fato à sua doutrina da autonomia moral na Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

2) Em que data Hobbes nasceu e por que sua mãe quis pari-lo o mais rápido possível? Relacione sua resposta com a ameaça da Invencível Armada sobre a Inglaterra e o papel do medo em sua doutrina do contrato social.

3) Que língua os barqueiros que pretendiam roubar e matar Descartes falavam? Explique e fundamente a reação do filósofo a partir de sua moral provisória.

4) Nietzsche era onanista? Por quê? Desenvolva sua resposta a partir do relacionamento do filósofo com Wagner e analise a Cavalgada das Walkírias nesse contexto.

5) Quais eram as armas que Maquiavel apresentou para o esquadrão de infantaria pesada em sua obra A arte da Guerra? Fundamente sua resposta a partir dos Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

6) Quem era a rapariga pega em flagrante com Schopenhauer, quando ele atirou uma bisbilhoteira idosa escada abaixo? Quanto tempo ela demorou para morrer? Quanto ele pagou de indenização? Explique a atitude do filósofo através da doutrina das virtudes exposta em O Mundo como Vontade e Representação.

7) Por que Rousseau achava que os selvagens brasileiros eram bons? Qual a relação dessa doutrina com o contrato social e com a presunção de inocência em nosso sistema penal?

8) Qual era a raça do cachorro que Leibniz ensinou a falar? Quantas palavras ele aprendeu? Quanto tempo foi despendido pelo filósofo nesta tarefa? Por que a voz do cachorro era gutural? Qual a explicação do filósofo para esse fato? Relacione o método pedagógico utilizado por Leibniz com sua doutrina da monadologia.

As respostas serão avaliadas conforme a sua relevância filosófica.
Respostas de cunho pessoal, histórico, psicológico ou social não serão toleradas, implicando o imediato indeferimento da candidatura.
Serão aceitas provas apenas com esferográfica preta.
Não serão aceitas rasuras.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Protesto contra o Espigão na Lima e Silva

Já assinei o abaixo-assinado e ontem me juntei rapidamente ao protesto contra a construção de um espigão na rua Lima e Silva, em Porto Alegre. Esses grandes projetos de engenharia em zonas centrais e valorizadas das cidades tendem a dar grandes lucros para empreiteiras, incorporadoras e corretoras, mas detonam a estrutura viária, sobrecarregam os sistemas de água, luz e esgoto, tolhem a paisagem e descaracterizam um bairro antigo e com características arquitetônicas bem peculiares.

Não ao espigão!

Não ao espigão!

Abaixo, reportagem sobre o assunto via RS Urgente:
A construtora Melnick promoveu nesta quarta-feira (11) um coquetel de lançamento do espigão de 20 andares projetado para ser construído na rua Lima Silva, bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Moradores do bairro, contrários à construção do edifício, realizaram uma manifestação de protesto no local, em frente ao centro comercial Nova Olaria.

Para os moradores, a obra é uma violência urbanística e ambiental em um bairro caracterizado por suas casas de estilo açoriano e com prédios de no máximo nove andares. A comunidade da região não foi consultada sobre a obra conforme determina a lei de impacto de vizinhança. Entre os efeitos negativos da construção, os moradores citam a derrubada de árvores que abrigam comunidades de papagaios, a diminuição da luminosidade e o bloqueio do sol em muitas casas situadas no entorno da obra e agravamento dos problemas do sistema viário da região. A mobilização denuncia ainda que a prefeitura aprovou a obra ignorando as normas que o Plano Diretor estabelece para a região.

As imagens do protesto são da Agência Celeuma Imagens.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Os aiatolás e o apartheid político brasileiro

O post de Pedro Doria sobre as próximas eleições no Irã avança muito além das tradicionais e bizarras caricaturas de aiatolás, mostrando as opções políticas de um país interessante e complexo, tal qual o Brasil. Lá pelas tantas ele cita o professor Abbas Milani, provavelmente o maior especialista no país que vive no exterior, que classifica o governo iraniano pós-revolucionário como “uma ‘democracia de apartheid’. Quer dizer: a democracia não é para todos e há muitos excluídos. Mas, dentre aqueles poucos que têm acesso, a disputa por poder é real. Depois desse comentário, ele passa a narrar as diferenças políticas entre os candidatos. Mohammad Khatami, pró-reformas e preferido do Ocidente e Mahmoud Ahmadinejad, conservador e preferido pelo conselho de anciões e pelo aiatolá Ali Khamenei.

Mas eu parei no apartheid político... reli, e pensei: e o Brasil?

1) Podemos dizer que a democracia é para todos?

2) Podemos dizer que entre aqueles poucos que têm acesso, a disputa por poder é real?

Podemos dizer que a democracia é para todos? De um ponto de vista puramente formal, podemos dizer que sim, em tese todos são obrigados a votar e, de fato, não houve em tempos recentes maiores distúrbios durante os processos eleitorais. Os mais ufanistas gostam de citar o rumoroso caso da eleição de Bush para o segundo mandato - com votação fraudada, para mostrar que a democracia brasileira já superou esses problemas. De fato, essa é uma vitória formal de nossa democracia. Mas não basta olhar apenas para sua parte formal ou espectral, é importante entender seu conteúdo. Aí as coisas ficam mais complicadas.

Fiquemos somente com o poder do povo: o poder legislativo, verdadeiro pulmão de qualquer democracia; no Brasil, distribuído em duas casas legislativas, Câmara Federal e Senado.

Os representantes do Senado são tipicamente representantes das oligarquias estaduais, casa responsável por nosso federalismo e, segundo alguns, desnecessária. São três senadores por estado da federação, não importando seu tamanho, nem sua população, nem sua economia. O que está em jogo nessa casa são os "interesses dos estados". Nessa casa, o Amapá com 384.825 eleitores elege três senadores, o mesmo número que democraticamente São Paulo também elege, com 29.143.392 eleitores ou Rio Grande do Sul, com 7.925.459 eleitores.

Os representantes da Câmara, em tese, deveriam representar proporcionalmente a população brasileira, mas na prática há enormes distorções. São Paulo elege o número máximo de 70 deputados federais, cada um representando 586 mil habitantes. Já o Amapá elege o número mínimo de 8 deputados, cada um representando cerca de 48.000 eleitores. Isto é, menos do que um décimo da representação por habitante de São Paulo! São 11 estados na mesma situação do Amapá numa federação com 26 estados!

Estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul, com maior população, detém também maior parte da produção industrial e a esmagadora oferta de serviços, especialmente do terciário superior, gerando a maior parte da riqueza e do desenvolvimento social, mas são politicamente nanicos no atual sistema político brasileiro. Assim, paradoxalmente, graças aos milagres da matemática, o peso político dos interesses urbanos é muito menor do que deveria ser, havendo nitidamente um descompasso entre a representação política e os interesses sociais e econômicos e um verdadeiro apartheid entre os interesses do Brasil urbano e a sua representação política.

As grandes tensões sociais em números absolutos localizam-se nas áreas urbanas. Talvez seja por isso que problemas prementes sejam postergados ad infinitum. o problema das favelas, cruel, urgente, não tem, do ponto de vista político, o peso que tem do ponto de vista social, já que se concentra nos grandes e sub representados politicamente centros urbanos.

Um argumento muito usado pelos defensores do atual sistema é o medo de que os estados pequenos sejam esquecidos em suas demandas, frente aos estados maiores e mais fortes. - que haja "quebra do pacto federativo". Contudo, eles já são atualmente esquecidos por suas oligarquias, como o Maranhão, com péssimos indicadores sociais, governado pela família Sarney há décadas. Que a presidência do Senado Federal esteja sendo exercida, pela segunda vez, por um senador do Amapá é um acinte à democracia brasileira e uma aberração social, posto o que esse senhor representa para os interesses do Brasil moderno, urbano e industrial.



Chegamos, desse modo, pelo exemplo histórico, à resposta da primeira pergunta: não, a democracia brasileira tem seus pulmões doentes. O nosso atual sistema de representação legislativa impede uma democracia para todos. Ainda que, do ponto de vista formal, todo o teatro seja solenemente executado: vários candidatos, filas nos locais de votação, renovação do executivo e do legislativo etc. o controle das decisões de Estado tem grande autonomia e independência frente à sociedade e às “escolhas democráticas” - a tal da "vontade popular". Com a matemática milagrosa do sistema eleitoral brasileiro, bastiões do coronealismo hipertrofiados de poder, os verdadeiros donos do poder, ainda detém parcelas fundamentais do Estado brasileiro.

Os "novos" presidentes da Câmara e do Senado são representantes ilustres do alto clero - em oposição ao baixo clero (esses só possuem castelos...). O alto clero outorga a si as decisões importantes, aquelas chamadas pomposamente de decisões de estado. Para manter a analogia com o início do post, tal qual os aiatolás exercem essa função no Irã. O clubinho é fechado e entrar nele exige fazer milagres - dente os mais notáveis, a posse de canais de TV e o enriquecimento extraordinário.

Existe disputa de poder real nesse sistema de representação política? A cooptação e a capacidade de conciliar interesses faz com que, numa perspectiva histórica mais ampla, a resposta seja não, e que as grandes mudanças do curto prazo apareçam apenas como leves acomodações. È o tal do afidalgamento a que se refere Faoro. Quando o cara chega no poder ou perto dele, fica igual a quem o possui. Assim, as antigas oligarquias sobrevivem eleição após eleição, executivo após executivo, incólumes, trazendo para o Brasil uma impressionante e perversa estabilidade institucional. Formando um verdadeiro e nefasto conselho de anciões. Se houvesse disputa real entre os dois brasis, o moderno e o arcaico, a aliança Lula-Sarney ou ACM-FHC jamais poderia ter existido... Claro está que nessas alianças o grande excluído é o eleitor, que, como eu, morador de uma grande cidade, não quer o chefe do clã na presidência do Senado, nem seus afiliados espraiados eternamente pelos ministérios da esplanada.

Como poderemos nos libertar desse apartheid político que tolhe acintiosamente a representação política de seus moradores urbanos e descomprometidos com as oligarquais - a grande maioria dos brasileiros?

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Máximas

Abaixo, palhinha do texto Máximas, de Christel Fricke, apresentado no X Kant-Kongress que aconteceu em São Paulo em 2005. O texto foi traduzido por mim e por Gerson Neuman em 2008 e publicado na revista Contingentia - revista do setor de alemão da UFRGS. Atualmente, Fricke é diretora do Centro de Estudos sobre Normatividade na Universidade de Oslo, com estudos publicados sobre a filosofia estética de Kant e o agente imparcial de Adam Smith. Ela é, certamente, uma das pessoas das quais vale a pena acompanhar o trabalho para saber o que de mais relevante está acontecendo em filosofia hoje.

“Máximas” - este é um conceito-chave da filosofia moral de Kant. As razões para essa função-chave são manifestamente: a qualidade moral de uma ação depende da qualidade da Máxima que a fundamenta – essa a tese kantiana. Trata-se, conforme Kant, na avaliação moral de uma ação, não de suas conseqüências reais ou de uma ação como acontecimento observável em uma determinada localização espaço-temporal, mas sim do caráter a partir do qual uma pessoa praticou a ação. Isso tudo não é discutido. Contudo é notoriamente obscuro o que exatamente é compreendido por “Máximas” e como as “Máximas” podem ser inseridas em uma psicologia moral plausível.

Pelo termo “Caráter” nós pensamos primeiramente na intenção a partir da qual uma ação é assumida. A qualidade moral de uma ação torna-se dependente da intenção que lhe fundamenta, o que nos é inteiramente sabido. Se Lars pisar no pé de Lise e Lise se queixar com as palavras “Lars pisou no meu pé; ele não o fez acidentalmente, mas sim com intenção”, então ela se queixa menos da dor sentida do que da má intenção moral de Lars. Intenções são estados de espírito bem determinados de uma pessoa, estados do querer de uma determinada ação. A intenção de Lars, que está implícita em relação a Lise, é a intenção de, num determinado momento, lhe pisar no pé e, com isso, lhe machucar. Mas nós não devemos entender máximas simplesmente como intenções. Máximas não são, segundo Kant, estados de espírito singulares determinados, espaço-temporalmente localizados de uma pessoa, que quer realizar uma determinada ação, mas sim fundamentos práticos subjetivos, “sob as quais repousam diversas regras práticas” (KpV, §1, Cf. Erklärung). Como fundamentos, as máximas são princípios gerais. E é essa universalidade das máximas, sobre a qual repousa especialmente o interesse de Kant, pois, conforme a regra moral kantiana, só é moralmente boa a ação que uma pessoa pratica, cuja vontade é determinada por uma máxima, da qual essa pessoa possa querer que ela “deva se tornar uma lei universal da natureza” (GMS, AAIV, 421). Testar uma ação a partir de sua qualidade moral significa testá-la conforme essa formulação, se se poderia querer que as máximas que lhe servem de base devem se tornar uma lei universal da natureza, ou seja, se, sobretudo, for possível fazer dessa máxima uma lei da natureza.

(...)

Mais em: http://www.seer.ufrgs.br/index.php/contingentia/article/view/6766/4072

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Creditos de carbono e pauta de exportações

Abaixo, palhinha da entrevista de Divaldo Resende, da Cantor CO2e à Gazeta Mercantil sobre o promissor mercado de créditos de carbono. É incrível pensar que lugares como o da foto ao lado possam gerar riqueza. Num país como o nosso, as potencialidades são imensas:

As perspectivas de entrada recursos no País são em torno de US$ 330 milhões somente com a venda de créditos de carbono. Se considerar os recursos necessários para a implementação do projeto e outras atividades paralelas, esse setor movimenta mais de US$ 1 bilhão no País. Se colocar o crédito de carbono na pauta de exportações, fica entre os 25 maiores produtos exportados do Brasil.

Ainda sobre Paraisópolis.

Requento um pedaço modificado de um post sobre o que julgo ser a verdadeira causa da violência em Paraisópolis, a favela. É incrível que depois de anos de governos de "esquerda" o problema das favelas continue, no seu grosso, intocado. Não haverá justiça social nem crescimento econômico sustentável enquanto milhões de brasileiros viverem em condições indignas de moradia, sem saneamento, transporte, saúde e educação adequadas. A proximidade com os ricaços só aumenta a revolta e escancara a injustiça. Imaginem-se morando num barraco sem luz e sem banheiro, mas com vista para o espigão que tem uma piscina por andar... Nesses casos, a polícia faz o triste papel de capitão do mato, resolvendo na porrada o que é direito constitucional.

A principal causa de tais índices de violência, no entanto, parece ser outro do que aquele proferido iradamente nos discursos oficiais: a favela. Sem condições mínimas de segurança, habitação, higiene e educação, a violência transborda com naturalidade de barracos mal equilibrados e sem canalização de esgoto. O interessante é que a violência somente se torna um problema social quando desce para o asfalto. Confinada aos morros e favelas a violência é vista como "guerra de traficantes". Os programas de governo de desfavelização são tímidos e muito pontuais para o tamanho do problema, que inclui uma legislação fundiária kafkaniana, a base para todas as ações subseqüentes. Enquanto o verdadeiro problema fundiário brasileiro (ao contrário do que prega, por exemplo, o MST) encontra-se nas regiões metropolitanas do Brasil e não no campo, não for enfrentado com determinação, as favelas continuarão sendo o grande viveiro da violência cega de nossas grandes cidades.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O desconforto com o sujeito moderno

Aproveitando o ensejo dos dois últimos post, requento um de 28 de setembro de 2006 do meu spaces , sobre o livro Modernism as a Philosophical Problem.

Em seu instigante livro: Modernism as a Philosophical Problem - On the Dissatisfactions of European High Culture; Robbert Pippin apresenta um belo quadro histórico sobre a evolução e crítica do conceito do sujeito moderno como espontaneidade. Pippin argumenta que, desde o estabelecimento do sujeito moderno como espontaneidade no Idealismo Alemão, esse conceito é progressivamente atacado por diversos motivos. Entre o coro de críticos à noção de espontaneidade e, com ela, as noções correlatas de liberdade e responsabilidade, há grandes expoentes do pensamento ocidental como Freud, Marx e Darwin. Cada um, a seu modo, critica a noção de liberdade e, conseqüentemente, a noção de autonomia do indivíduo a partir de regiões específicas da realidade: psicologia, economia/sociologia e biologia, respectivamente. No mesmo sentido, filósofos como Nietzsche, Heidegger e Foucault recusam sistematicamente a noção do sujeito moderno como racional e espontâneo.

Pippin se pergunta por que os ideais iluministas falharam do ponto de vista filosófico, já que do ponto de vista prático houve uma considerável evolução da técnica e da ciência, e, com elas, o aumento do bem-estar do indíviduo e de suas capacidades de escolha. A ciência e a técnica, com a ciência econômica à frente, foram responsáveis pela racionalização da produção, provocando imensos ganhos de produtividade e, assim, o aumento impressionante da riqueza. A universalização da educação, por outro lado, ampliou a compreensão do homem sobre o mundo e a sua capacidade de escolha. Quanto mais educado for o agente, maiores são as condições de compreender o mundo complexo que o cerca e, assim, de escolher as máximas que melhor lhe convém.

Há um desconforto com o sujeito burguês, filho do iluminismo, que, talvez se explique não pelo fracassso da filosofia iluminista, mas pelo seu sucesso. O homem dominou a natureza e criou um mundo que depende somente de suas capacidades e escolhas. Mas esse mundo não se tornou melhor com o homem como senhor da natureza e dono do seu destino. Certamente a noção de espontaneidade como racionalidade venceu. O problema é que o homem é muito mais do que um ser racional e consumista, em quem a pulsão de morte garante um irresistível apego ao conforto e à tranqüilidade até o fim dos seus dias.

A vitória sobre a natureza e a posse dos bens materiais não garante um sentido à vida humana. Ao contrário, a vitória do cálculo e da racionalidade burguesa desmagifica, para usar um termo caro a Nietzsche, a compreensão do mundo, tornando-o duro e insípido. Não há apoio espiritual, pois Deus, em todas as suas manifestações, está morto. O homem está condenado à liberdade, porque, num sentido relevante, ela não lhe pertence verdadeiramente. A liberdade burguesa é indissociável da expectativa do futuro; desse modo, o que resta ao agente racional e livre é esperar a morte, pois lhe falta mesmo a pergunta para iniciar a sua busca pelo sentido das coisas, da vida e da morte. É para a angústia que convergem os esforços pela compreensão do mundo que nos cerca, já que a nossa capacidade de escolha é condicionada pela perspectiva sempre presente ao sujeito livre e racional de que somos finitos, em todas as nossas dimensões.

Adam Smith mostrou que o progresso econômico e social depende da divisão do trabalho, o que significa que progressivamente somos mais e mais dependentes da sociedade. O mito do homem solitário que domina a natureza e é senhor de suas decisões, expresso na história de Robinson Crusoé, é um mito distante da realidade urbana e fragmentária na qual o homem racional e livre do iluminismo se conformou. O homem integral do iluminismo, como cidadão cosmopolita e participante da esfera pública, se fragmentou num sem número de profissões e especializações; se perdeu no labirinto das instituições pós-modernas; se confundiu com a massa e perdeu a sua representatividade. É no mundo racional da burocracia, para lembrar o diagnóstico de Weber sobre a forma mais eficiente de dominação, que os personagens de Kafka se perdem e se deformam. Esse mundo, apesar de toda a sua irracionalidade, é o mundo que o iluminismo nos legou. A vitória da racionalidade e da liberdade permitiram ao homem construir o seu mundo de costas à natureza, e é nesse mundo que o sujeito moderno está preso. É por isso que há um grande desconforto com o sujeito moderno.

Prêmio da Philosophical Quartely: Ensaios sobre autonomia

Abaixo, divulgação do Prêmio de ensaios promovido pela prestigiada Philosophical Quartely. O prazo das inscrições é primeiro de novembro e o tema é autonomia. Não creio que esses prêmios revelem novos filósofos, tal como campeonatos de categorias de base revelam novos craques no futebol. Só para ficar nos mais ilustres, Rousseau e Schopenhauer tiveram seus ensaios, respectivamente no ensaio Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e ensaio Sobre os fundamentos da moral, rejeitados. No caso do segundo, em sua justificativa da rejeição do único trabalho escrito, a academia de Copenhagem expressamente declarou que nem acabara de lê-lo... Enfim, é verdade que os tempos são outros e o tema interessante. Quem sabe aparece uma surpresa brasileira, já que temos vários kantianos ilustres, em várias categorias, por aqui.



Submit your paper to The Philosophical Quarterly Prize Essay Competition 2009 – £1500 prize



Moral Autonomy

In the Groundwork of the Metaphysics of Morals of 1785, Immanuel Kant first introduced the philosophical public to the notion of moral autonomy. The common conception of morality as unconditionally binding is possible only if the human will is construed as subjecting itself to a formal, universal law of reason. This ‘Kantian paradox’ of a necessary law that we freely impose upon ourselves has provoked and inspired philosophers ever since. For Kant, autonomy is also the ground of the special status of human beings, their dignity. In more recent times, notions of autonomy and self-determination have played an important role in more applied fields in ethical and legal theory.



Essays are invited that consider any aspect of moral autonomy or its history.



The closing date for submissions is 1st November 2009.



For entry details, please visit:

http://www.st-andrews.ac.uk/%7Epq/essay09.htm.

Liberdade, autonomia e justiça

A análise em profundidade e a centralidade da liberdade como problema filosófico é algo muito recente na história da filosofia. O conceito de liberdade, embora antigo, começa a ser tematizado com radicalidade apenas em meados do século XVII. O que me interessa aqui é traçar o desenvolvimento da tradição liberal de Locke, Rousseau e Kant, que leva a uma abordagem da justiça como liberdade. Nesse post, um esboço da justiça como liberdade na visão de Amartya Sen.

Para Locke, bem como para outros da tradição jusnaturalista, o homem possui direitos naturais, inatos, que não podiam ser postos em risco nem por outros cidadãos, nem pelo poder estatal. A liberdade era vista como não-impedimento, ausência de restrições. O foco de Locke em sua abordagem era fornecer bons argumentos para impedir o abuso do poder estatal sobre os cidadãos. No estado de natureza os homens eram livres, gozando de todos os seus direitos naturais. A entrada no estado civil não lhes retira esses direitos, que devem ser exercidos sem interferências externas. Nesse sentido, liberdade é entendida em sentido meramente negativo.

Rousseau dá um passo avante quando afirma que entrada no estado civil é uma ato de autonomia do homem, à medida que ele se submete espontaneamente às leis do estado civil, saindo, com isso, do estado de natureza. A liberdade como autonomia é liberdade em sentido positivo. É uma capacidade que o homem livre e soberanamente decide exercer: se submeter às leis não deve ser motivado pela coerção ou pelo medo, mas pela livre adesão dos espíritos.

Liberdade, nesse sentido, adquire nova e poderosa dimensão, fornecendo a base para o desenvolvimento do iluminismo e inaugurando a modernidade.

Kant, o pensador iluminista mais sistemático, afirma que o iluminismo é a saída do homem de sua minoridade, estado no qual ele mesmo se colocou. Segundo Robert Pippin, em Modernism as a philosofical problem, a tarefa do cidadão do mundo agora, na modernidade, é a busca da maioridade, ou seja, da autonomia. A tarefa, portanto, é o desenvolvimento do homem enquanto ser racional e livre, pois racionalidade e liberdade, do ponto de vista prático, são equivalentes.

O conceito de autonomia é formulado rigorosamente por Kant em sua Fundamentação da metafísica dos costumes. Autonomia é capacidade do homem de, espontaneamente, seguir leis. No caso específico da filosofia de Kant, do homem seguir a lei moral, cujo princípio fundamental é o imperativo categórico: age de tal forma que a máxima da tua ação possa se transformar numa lei universal.

O desenvolvimento do conceito de autonomia influenciou profundamente as idéias sobre o que seja justiça. Uma sociedade justa é uma sociedade em que os seus cidadãos sejam livres e que possam, portanto, exercer a sua autonomia. Desse modo, as instituições devem funcionar de tal maneira que permitam o desenvolvimento da autonomia dos seus cidadãos. Mas, o que significa isso exatamente?

Recentemente, Amartya Sen, em seu Desenvolvimento como liberdade, ilustra liberdade em sentido positivo de maneira didática: um cidadão do mundo deve ter a liberdade (em sentido positivo) de celebrar contratos, pois essa é uma condição fundamental para ele poder ter dignidade nas sociedades complexas contemporâneas. Sem essa liberdade, esse cidadão não pode nem ser empregado, quiçá, patrão... Contudo, o exercício positivo dessa liberdade requer uma série de não-impedimentos. Por exemplo, para exercer a liberdade de celebrar contratos, esse cidadão deve saber ler e escrever, pois, senão, de outro modo, ele não pode exercer sua liberdade de celebrar contratos. Pobreza nada mais é do que uma série de impedimentos, que não permitem ao homem o desenvolvimento de sua liberdade. Justiça social é o funcionamento das instituições de tal modo que elas permitam o desenvolvimento da liberdade de seus cidadãos, numa palavra, que eles sejam autônomos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O que aconteceu em Paraisópolis???

Algumas vezes uma imagem vale mais do que mil palavras. Caso da foto de Tuca Vieira ao lado, respondendo à pergunta: o que aconteceu em Paraisópolis???

Pobreza e justiça: questões antigas, novas relações

Publico abaixo mail que mandei ao Dadaseyn em resposta à um post do Rogério Severo sobre o fato curioso de que antigamente lidar com a pobreza era uma questão de benemerência e hoje é uma questão de justiça.

Talvez a idéia de que ninguém deva ficar abaixo da linha da pobreza seja uma idéia moderna, pois, até onde eu sei, não havia sido desenvolvido o conceito de linha de pobreza ou outro conceito análogo em Atenas.

Agora, Platão trata com profundidade a questão na República, o livro em que trata sistematicamente da justiça. Lá, uma das condições fundamentais para uma sociedade justa é existência de uma classe de produtores, que fazem justiça ao fazerem o que sabem fazer melhor, produzir.

Bom, aproveitei e fui dar uma conferida no Górgias, onde o tema da justiça e da economia também são tratados e lá encontrei água para o moinho do Fleischacker. Veja a conclusão da argumentação de Sócrates contra Polo:

Sócrates — Logo, a economia livra da pobreza; a medicina, da doença; e o castigo, da intemperança e da injustiça.

Polo — Parece.

Sócrates — E de todas elas, qual será a mais bela?

Polo — A que te referes?

Sócrates — Economia, medicina, justiça.

Polo — Sem comparação, Sócrates, a justiça.

Podemos inferir dessa conclusão que economia e justiça são diferentes pois não havia, digamos assim, remédio normativo contra a pobreza (leis, projetos públicos, bolsas, etc). Ou seja, as condições materiais não estavam sob controle direto das instituições sociais. Algo bem diferente do que acontece em Rawls, onde se pressupõe que os bens sociais principais possam ser corretamente mensurados para poderem ser distribuídos.

Certamente a aproximação do problema da pobreza com o problema da justiça está associado com o desenvolvimento conceitual da economia e com o avanço das técnicas de mensuração da riqueza. A econometria, por exemplo, a grande ferramenta para formulação e execução de políticas econômicas é uma ciência bebê, com apenas 60 anos.É possível pensar nesse caso num argumento análogo ao utilizado por Hans Jonas no seu Princípio Responsabilidade, quando afirma que os conceitos éticos na Grécia Antiga tratavam apenas e exclusivamente de questões humanas. Com o aperfeiçoamento da técnica e o conseqüente domínio da natureza, o homem passa a ter um poder sobre a natureza que não tinha antes. Dessa feita, os conceitos éticos devem ser ampliados de modo que abarquem também a natureza. Não havia responsabilidade pelas nossas florestas porque não podíamos destruí-las. Agora que podemos, somos, ao contrário de quando não podíamos, moralmente responsáveis por elas.Do mesmo modo, antes a pobreza não era um problema moral (melhor colocado, um problema de justiça) porque não se podia fazer nada - a não ser caridade - para aplacá-la. Hoje, com o atual grau de desenvolvimento das forças produtivas é possível eliminar a pobreza: é algo que está ao nosso alcance fazer; portanto, eliminar a pobreza é sim, hoje, uma questão de justiça.

Assim, para te responder diretamente a questão 2, me parece que houve um acréscimo às discussões tradicionais sobre a justiça na medida em que os temas eram antigos e bem conhecidos. Agora, houve uma extensão do conceito de justiça devido as novas ferramentas empíricas que surgiram para tratá-lo.

Sócrates e a voz da Deusa

Sócrates é uma personagem ímpar na história da filosofia. Ao inventar novo método de investigação, cuja principal ferramenta é o discurso, não legou nada escrito à posteridade, muito embora seja pela tradição escrita, a partir dos diálogos de Platão, que a filosofia amadurecerá como arte da busca da verdade. As fontes que testemunharam as interpelações de Sócrates aos cidadãos de Atenas são poucas e nos fornecem somente quadro parcial do feioso e singularíssimo patrono da filosofia. Além de Platão, Xenofonte e Aristófanes nos deixaram registros do mestre.
Na Apologia de Sócrates, diálogo escrito por Platão em que narra o julgamento de Sócrates frente à Assembléia de Atenas, ao encerrar sua defesa, num dos momentos mais dramáticos,da história da filosofia, Sócrates se dirige aos seus juízes da seguinte forma:
"A mim, de fato, ó juízes (...) aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela voz habitual da deusa (daimon) em todos os tempos passados me era sempre freqüente e se opunha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal da deusa não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma. Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um mal.."
Essa passagem ilustra com a força e a poesia características da prosa de Platão a tarefa do filósofo: a busca da verdade, uma exigência moral que é superior à própria existência de quem a procura. É a deusa da verdade que fala para Sócrates. De fato, é a busca da verdade a novidade trazida por Sócrates à arte de bem argumentar. Adicionalmente, Sócrates também inaugura a exigência da coerência no discurso. Os sofistas, os grandes adversários de Socrates, eram, em geral, professores de retórica, cuja arte visava o convencimento. As técnicas eram ensinadas ao orador de modo que ele pudesse se fazer ouvir nas Assembléias da cidade, onde as questões vitais eram discutidas pelos atenienses. Sócrates impunha a condição da coerência aos narradores e ironizava a constante mudança de opinião dos sofistas sobre os temas que eram postos em debate. Na prática, Sócrates também foi o inventor do princípio de não-contradição nas investigações filosóficas. Desse modo, a arte da filosofia atinge a sua maturidade ao ter objeto e método claramente delimitados: a verdade como conteúdo e a coerência como método constituem as grandes balizas da investigação filosófica até hoje.
Por dar ouvidos à deusa da verdade, Sócrates se considerava perseguido pelos cidadãos de Atenas, já que estes não conseguiam enxergar em sua filosofia nada mais do que a arte da intromissão-nos-assuntos-alheios. Para alguns, a voz da deusa soava como sinal de senilidade, como bem mostrava o embaraço de proeminentes cidadãos de Atenas ao serem questionados por Sócrates sob temas que, embora afirmassem que sabiam, de fato, não sabiam. Seja como for, será que hoje, em tempo de produtividade de papers e filosofia acadêmica, daríamos ouvidos a alguém que ouvisse a voz da deusa?