sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

A vida colonial vista da Casa Grande

Gilberto Freire tem a interpretação do Brasil mais conhecida no exterior. Fez escola os mitos que criou: a democracia racial, o coração generoso do senhor, o local privilegiado do escravo na vida colonial. Na minha opinião, a principal influência de Freire é Marcel Proust. A história não tem sentido. É um arrazoado de sentimentos gestados na volta da Casa Grande. A casa é o local acolhedor, seguro, protegido e sempre justo. Não existem problemas de classe. Afinal, quem fala é a classe dominante, da sombra fresca do alpendre, deitada em suas redes, vendo os negros trabalharem enquanto se empanturram de doces das negras quituteiras. Evidentemente, essas críticas não são suficientes para desmerecer o trabalho de GF. Mas é difícil engolir que o lugar mais bem nutrido da colônia fosse a senzala. Que o latinfúndio canavieiro fosse uma consequência lógica e inevitável da colonização. Que a escrava sedutora fosse a responsável pela libido elevada do senhor. Juntamente com as posições políticas assumidas posteriormente, como apoiar o golpe de 64, colocam GF, sem injustiças, à direita do espectro político. Enfim, GF é o intérprete que mostra o Brasil que as nossas elites gostam de enxergar: generosa nas mesquinhas condições do meio que ela mesma criou; gentilmente racista, reconhecendo as virtudes das raças à serviço do senhor; inteligente no comércio exterior, cosmopolita em seus berços holandeses e frutas e carnes podres importadas de Lisboa... Seja como for, GF fornece uma interpretação, embora pouco consistente, original e poderosa, do começo da colonização brasileira que deve ser lida.  Segue o último resumo da temporada de intérpretes, que formou ao longo das postagens feitas nesse blog  um mozaico quase bizantino do que é, afinal de contas, o ser brasileiro. 

A empresa de ocupar e colonizar o vasto território brasileiro levada a cabo pelos portugueses, sob as mais rudes condições, foi inegavelmente bem sucedida. O êxito deve ser avaliado, sobretudo, pelas conseqüências geradas. Em especial a unidade territorial, lingüística e cultural de um país de dimensões continentais. Se levarmos em conta o diminuto tamanho da população portuguesa, seu pequeno território e as dificuldades inerentes ao processo de colonização — que leva ao processo de despovoamento da metrópole - o êxito português torna-se ainda maior. Nessa empresa, sustenta Freyre, o português não esteve sozinho. Acompanhado pelo indígena nativo e pelo negro importado para o trabalho, o português, libidinoso e sem orgulho de raça, liderou o intenso processo de miscigenação que resultou na efetiva ocupação do território. A raça mestiça, contendo no sangue o índio, o negro e o europeu, estava em melhores condições de enfrentar as adversidades do clima e da precariedade de condições. Tudo faltava. Em parte devido às adversidades do clima, do solo. Preponderantemente devido às características peculiares da colonização portuguesa: seja pelas suas motivações econômicas, o lucro fácil, a empresa cosmopolita, seja pela Weltanschaung do português. Esse argumento é ilustrado por Freye ao analisar os hábitos alimentares da Colônia.
A comida era escassa e, em geral, de péssima qualidade. Mesmo na Casa Grande, os habitantes da Colônia eram muito mal nutridos. Em minucioso levantamento, Freyre identifica na inadequada alimentação um dos principais obstáculos para a colonização. Destaca o autor duas causas preponderantes: o meio — com solos pouco adequados para as culturas européias tradicionais; e, o homem, liderado a ferro e fogo pelo português, cujo propósito maior da aventura era a busca do lucro fácil, com aversão ao trabalho manual. Com a introdução da cana de açúcar, o quadro não se altera. Agora, em função da monocultura, todos os braços estão ocupados com o cultivo da cana, todas as atenções se voltam para a Europa, de onde se importa carne e frutas, de modo que não resta espaço para outras culturas ou para a criação de gado, tido como ameaça aos canaviais.

Nesse exemplo, Freyre analisa a influência dos dois fatores: o clima e o homem. Ainda que não exclua a importância do meio, uma vez que o solo alcalino impede o cultivo das fontes tradicionais de alimentação européia e que as variedades nativas eram poucas e insatisfatórias para quaisquer padrões civilizacionais, o autor considera como preponderantes para a questão alimentar a raça. Em especial, o pouco interesse português e, em breve, senhorial pela policultura. Curiosamente, repara Freyre, são os portugueses os inventores da plantação em larga escala para exportação. Verdadeiros universos paralelos, a grande lavoura canavieira tornava imprestável o solo para as demais culturas. As distâncias que impunha entre as comunidades faziam com que o gado chegasse magro, sem leite, e o prato permanecesse vazio. Esses fatores são culturais e, portanto, podiam ter sido contornados inteligentemente pelo europeu que se instalava e se misturava com as gentes da terra.
Finalmente, a relativa homogeneidade geográfica, com a inexistência de obstáculos naturais intransponíveis como grandes cadeias de montanhas ou desertos, fez com que a população se distribuísse com hábitos semelhantes pelo território. Isso resultaria numa vantagem, se o propósito do colônia fosse o povoamento. Como não era, a escassez era generalizada, O indígena, com seus hábitos rudimentares, baseado na caça e na pesca, na coivada e no cultivo da mandioca e tabaco não fornecia base material suficiente para a nova civilização que surgia, em grande parte estimulada pelos férteis ventres das índias. Outro fator cultural preponderante, além do trabalho do escravo negro, que vincou o que há de próprio e de mais fundamental na formação original do país.

Fonte das gravuras: scanneadas do meu exemplar, da 3ª ed. de 1938. Desconheço se foram mantidas nas versões mais atuais.

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