quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O capitalismo de Estado e o estamento burocrático

No último capítulo de sua grande obra, Os Donos do Poder, Faoro retoma o seu argumento geral: características estabelecidas pela Revolução de Avis, no distante ano de 1370 no jovem reino de Portugal, determinaram a estrutura profunda da organização política e social brasileira, dando origem a uma forma peculiar de capitalismo, baseado na propriedade e na empresa estatal, o capitalismo político ou politicamente orientado. O poder político deste tipo específico de capitalismo, próprio da cultura luso-brasileira, se manifesta no estamento burocrático, estrutura de poder impermeável e autoritária de uma minoria, uma carapaça burocrática, alheia e indiferente ao resto da sociedade, que moldou decisivamente o Estado e a sociedade ao longo dos séculos. Inicialmente assentado no patrimonialismo pessoal (onde o rei era proprietário de todas as terras e das principais atividades de comércio), o capitalismo de estado passa a se assentar gradativamente sobre o patrimonialismo estatal, adotando o mercantilismo como técnica de operação da economia, onde o Estado se põe a frente dos interesses econômicos e dos negócios capitalistas.
Entre as principais características desse Estado mercador, Faoro destaca o apego à aventura e ao lucro fácil como valores que levaram, num primeiríssimo momento, à expansão, cuja aventura ultramarina está entre os fatos mais notáveis. O rei era o principal investidor e o principal beneficiário dessas aventuras, de caráter nitidamente mercantilista. O constante comércio e contato com o exterior, características peculiares dessa forma de Estado, criou uma sociedade aberta aos estrangeiros e às novidades, embora não seja ela mesma criativa nem proativa. Essa sociedade, pré-capitalista (mercantilista e não medieval), se remodela com o advento do capitalismo industrial, se amolgando às mudanças tecnológicas e políticas trazidas de fora, sem perder seu caráter e estrutura. No novo Estado industrial, as atividades privadas, quando de vulto, são realizadas pelo Estado, tornando-se uma “extensão da burocracia oficial”, aproximando o campo estatal do campo econômico, onde a dinâmica do mercado se altera “em direção ao mercado administrativo, com demandas seletivas, de caráter militar e político.” P. 831. Faoro também destaca a tendência especulativa que move o estamento, fazendo com que a economia funcione aos saltos, afeiçoado ao ganho fácil e às soluções miraculosas, avesso ao trabalho.
O Estado mercador, capaz de comerciar, desafia as estruturas de análise teórica tradicionais, pois traz em seu bojo um quadro administrativo com interesses próprios, uma elite letrada e versada na burocracia, cujo expoente é o bacharel, que não se confunde nem se reduz às classes sociais marxistas. Tampouco esse tipo específico de Estado contempla a perspectiva liberal, uma vez que a iniciativa privada, onde o valor e a ambição do indivíduo determinam o êxito e a ascensão social, não se coaduna com a figura típica do estamento: o funcionário, dócil e servil aos desígnios de seus superiores. Segundo Faoro, a distinção social só estava aberta àqueles que, tendo seu currículo e carreira aprovados de cima para baixo, seguissem uma espécie de ética confuciana, do bom funcionário, nos assuntos do Estado.
Desse modo, o poder tem um reduzido círculo de donos, impermeáveis e indiferentes à nação e à sociedade, cuja organização burocrática resiste incólume a passagem do tempo. Adicionalmente, tudo provém e tudo se espera desse estado provedor, detentor das iniciativas e dos negócios. Nessa perspectiva, “o chefe não é um delegado, mas um gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário” p. 837. Esse chefe, seja quem for, se adapta às exigências do estamento, utilizando os instrumentos políticos derivados do controle do aparato estatal, seja por adesão, seja pela força, para dirigir o Estado, bem como os seus negócios, orientando politicamente o capitalismo.

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