terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sócrates e a voz da Deusa

Sócrates é uma personagem ímpar na história da filosofia. Ao inventar novo método de investigação, cuja principal ferramenta é o discurso, não legou nada escrito à posteridade, muito embora seja pela tradição escrita, a partir dos diálogos de Platão, que a filosofia amadurecerá como arte da busca da verdade. As fontes que testemunharam as interpelações de Sócrates aos cidadãos de Atenas são poucas e nos fornecem somente quadro parcial do feioso e singularíssimo patrono da filosofia. Além de Platão, Xenofonte e Aristófanes nos deixaram registros do mestre.
Na Apologia de Sócrates, diálogo escrito por Platão em que narra o julgamento de Sócrates frente à Assembléia de Atenas, ao encerrar sua defesa, num dos momentos mais dramáticos,da história da filosofia, Sócrates se dirige aos seus juízes da seguinte forma:
"A mim, de fato, ó juízes (...) aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela voz habitual da deusa (daimon) em todos os tempos passados me era sempre freqüente e se opunha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal da deusa não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo, não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma. Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso arrisca ser um bem, e estamos longe de julgar retamente, quando pensamos que a morte é um mal.."
Essa passagem ilustra com a força e a poesia características da prosa de Platão a tarefa do filósofo: a busca da verdade, uma exigência moral que é superior à própria existência de quem a procura. É a deusa da verdade que fala para Sócrates. De fato, é a busca da verdade a novidade trazida por Sócrates à arte de bem argumentar. Adicionalmente, Sócrates também inaugura a exigência da coerência no discurso. Os sofistas, os grandes adversários de Socrates, eram, em geral, professores de retórica, cuja arte visava o convencimento. As técnicas eram ensinadas ao orador de modo que ele pudesse se fazer ouvir nas Assembléias da cidade, onde as questões vitais eram discutidas pelos atenienses. Sócrates impunha a condição da coerência aos narradores e ironizava a constante mudança de opinião dos sofistas sobre os temas que eram postos em debate. Na prática, Sócrates também foi o inventor do princípio de não-contradição nas investigações filosóficas. Desse modo, a arte da filosofia atinge a sua maturidade ao ter objeto e método claramente delimitados: a verdade como conteúdo e a coerência como método constituem as grandes balizas da investigação filosófica até hoje.
Por dar ouvidos à deusa da verdade, Sócrates se considerava perseguido pelos cidadãos de Atenas, já que estes não conseguiam enxergar em sua filosofia nada mais do que a arte da intromissão-nos-assuntos-alheios. Para alguns, a voz da deusa soava como sinal de senilidade, como bem mostrava o embaraço de proeminentes cidadãos de Atenas ao serem questionados por Sócrates sob temas que, embora afirmassem que sabiam, de fato, não sabiam. Seja como for, será que hoje, em tempo de produtividade de papers e filosofia acadêmica, daríamos ouvidos a alguém que ouvisse a voz da deusa?

2 comentários:

  1. Uma questão terminológica: a filosofia acadêmica remonta a Platão. Eu falaria em tempos de filosofia profissional.

    Outro ponto. Malgrado eu tenda a concordar com o que sustentas ser ilustrado pela passagem da Apologia, não concordo que seja ilustrado por esta. Sócrates, me parece, apenas está sugerindo que a morte pode não ser algo mal, pode ser um bem. Mas talvez tu estejas certo, e ele esteja dizendo que a morte é um bem quando serve à manutenção da verdade. Estaríamos falando de Sócrates não tivesse ele morrido em defesa de seu ideal?

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  2. Oi Marcio,
    sobre o primeiro ponto: pois é, para ti ver como o problema é antigo.
    Sobre o segundo, o importante é raciocionar "retamente" (gostaria de detalhes sobre a tradução) e não sobre as conseqüências materiais do raciocínio.

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