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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O desconforto com o sujeito moderno

Aproveitando o ensejo dos dois últimos post, requento um de 28 de setembro de 2006 do meu spaces , sobre o livro Modernism as a Philosophical Problem.

Em seu instigante livro: Modernism as a Philosophical Problem - On the Dissatisfactions of European High Culture; Robbert Pippin apresenta um belo quadro histórico sobre a evolução e crítica do conceito do sujeito moderno como espontaneidade. Pippin argumenta que, desde o estabelecimento do sujeito moderno como espontaneidade no Idealismo Alemão, esse conceito é progressivamente atacado por diversos motivos. Entre o coro de críticos à noção de espontaneidade e, com ela, as noções correlatas de liberdade e responsabilidade, há grandes expoentes do pensamento ocidental como Freud, Marx e Darwin. Cada um, a seu modo, critica a noção de liberdade e, conseqüentemente, a noção de autonomia do indivíduo a partir de regiões específicas da realidade: psicologia, economia/sociologia e biologia, respectivamente. No mesmo sentido, filósofos como Nietzsche, Heidegger e Foucault recusam sistematicamente a noção do sujeito moderno como racional e espontâneo.

Pippin se pergunta por que os ideais iluministas falharam do ponto de vista filosófico, já que do ponto de vista prático houve uma considerável evolução da técnica e da ciência, e, com elas, o aumento do bem-estar do indíviduo e de suas capacidades de escolha. A ciência e a técnica, com a ciência econômica à frente, foram responsáveis pela racionalização da produção, provocando imensos ganhos de produtividade e, assim, o aumento impressionante da riqueza. A universalização da educação, por outro lado, ampliou a compreensão do homem sobre o mundo e a sua capacidade de escolha. Quanto mais educado for o agente, maiores são as condições de compreender o mundo complexo que o cerca e, assim, de escolher as máximas que melhor lhe convém.

Há um desconforto com o sujeito burguês, filho do iluminismo, que, talvez se explique não pelo fracassso da filosofia iluminista, mas pelo seu sucesso. O homem dominou a natureza e criou um mundo que depende somente de suas capacidades e escolhas. Mas esse mundo não se tornou melhor com o homem como senhor da natureza e dono do seu destino. Certamente a noção de espontaneidade como racionalidade venceu. O problema é que o homem é muito mais do que um ser racional e consumista, em quem a pulsão de morte garante um irresistível apego ao conforto e à tranqüilidade até o fim dos seus dias.

A vitória sobre a natureza e a posse dos bens materiais não garante um sentido à vida humana. Ao contrário, a vitória do cálculo e da racionalidade burguesa desmagifica, para usar um termo caro a Nietzsche, a compreensão do mundo, tornando-o duro e insípido. Não há apoio espiritual, pois Deus, em todas as suas manifestações, está morto. O homem está condenado à liberdade, porque, num sentido relevante, ela não lhe pertence verdadeiramente. A liberdade burguesa é indissociável da expectativa do futuro; desse modo, o que resta ao agente racional e livre é esperar a morte, pois lhe falta mesmo a pergunta para iniciar a sua busca pelo sentido das coisas, da vida e da morte. É para a angústia que convergem os esforços pela compreensão do mundo que nos cerca, já que a nossa capacidade de escolha é condicionada pela perspectiva sempre presente ao sujeito livre e racional de que somos finitos, em todas as nossas dimensões.

Adam Smith mostrou que o progresso econômico e social depende da divisão do trabalho, o que significa que progressivamente somos mais e mais dependentes da sociedade. O mito do homem solitário que domina a natureza e é senhor de suas decisões, expresso na história de Robinson Crusoé, é um mito distante da realidade urbana e fragmentária na qual o homem racional e livre do iluminismo se conformou. O homem integral do iluminismo, como cidadão cosmopolita e participante da esfera pública, se fragmentou num sem número de profissões e especializações; se perdeu no labirinto das instituições pós-modernas; se confundiu com a massa e perdeu a sua representatividade. É no mundo racional da burocracia, para lembrar o diagnóstico de Weber sobre a forma mais eficiente de dominação, que os personagens de Kafka se perdem e se deformam. Esse mundo, apesar de toda a sua irracionalidade, é o mundo que o iluminismo nos legou. A vitória da racionalidade e da liberdade permitiram ao homem construir o seu mundo de costas à natureza, e é nesse mundo que o sujeito moderno está preso. É por isso que há um grande desconforto com o sujeito moderno.

Prêmio da Philosophical Quartely: Ensaios sobre autonomia

Abaixo, divulgação do Prêmio de ensaios promovido pela prestigiada Philosophical Quartely. O prazo das inscrições é primeiro de novembro e o tema é autonomia. Não creio que esses prêmios revelem novos filósofos, tal como campeonatos de categorias de base revelam novos craques no futebol. Só para ficar nos mais ilustres, Rousseau e Schopenhauer tiveram seus ensaios, respectivamente no ensaio Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e ensaio Sobre os fundamentos da moral, rejeitados. No caso do segundo, em sua justificativa da rejeição do único trabalho escrito, a academia de Copenhagem expressamente declarou que nem acabara de lê-lo... Enfim, é verdade que os tempos são outros e o tema interessante. Quem sabe aparece uma surpresa brasileira, já que temos vários kantianos ilustres, em várias categorias, por aqui.



Submit your paper to The Philosophical Quarterly Prize Essay Competition 2009 – £1500 prize



Moral Autonomy

In the Groundwork of the Metaphysics of Morals of 1785, Immanuel Kant first introduced the philosophical public to the notion of moral autonomy. The common conception of morality as unconditionally binding is possible only if the human will is construed as subjecting itself to a formal, universal law of reason. This ‘Kantian paradox’ of a necessary law that we freely impose upon ourselves has provoked and inspired philosophers ever since. For Kant, autonomy is also the ground of the special status of human beings, their dignity. In more recent times, notions of autonomy and self-determination have played an important role in more applied fields in ethical and legal theory.



Essays are invited that consider any aspect of moral autonomy or its history.



The closing date for submissions is 1st November 2009.



For entry details, please visit:

http://www.st-andrews.ac.uk/%7Epq/essay09.htm.

Liberdade, autonomia e justiça

A análise em profundidade e a centralidade da liberdade como problema filosófico é algo muito recente na história da filosofia. O conceito de liberdade, embora antigo, começa a ser tematizado com radicalidade apenas em meados do século XVII. O que me interessa aqui é traçar o desenvolvimento da tradição liberal de Locke, Rousseau e Kant, que leva a uma abordagem da justiça como liberdade. Nesse post, um esboço da justiça como liberdade na visão de Amartya Sen.

Para Locke, bem como para outros da tradição jusnaturalista, o homem possui direitos naturais, inatos, que não podiam ser postos em risco nem por outros cidadãos, nem pelo poder estatal. A liberdade era vista como não-impedimento, ausência de restrições. O foco de Locke em sua abordagem era fornecer bons argumentos para impedir o abuso do poder estatal sobre os cidadãos. No estado de natureza os homens eram livres, gozando de todos os seus direitos naturais. A entrada no estado civil não lhes retira esses direitos, que devem ser exercidos sem interferências externas. Nesse sentido, liberdade é entendida em sentido meramente negativo.

Rousseau dá um passo avante quando afirma que entrada no estado civil é uma ato de autonomia do homem, à medida que ele se submete espontaneamente às leis do estado civil, saindo, com isso, do estado de natureza. A liberdade como autonomia é liberdade em sentido positivo. É uma capacidade que o homem livre e soberanamente decide exercer: se submeter às leis não deve ser motivado pela coerção ou pelo medo, mas pela livre adesão dos espíritos.

Liberdade, nesse sentido, adquire nova e poderosa dimensão, fornecendo a base para o desenvolvimento do iluminismo e inaugurando a modernidade.

Kant, o pensador iluminista mais sistemático, afirma que o iluminismo é a saída do homem de sua minoridade, estado no qual ele mesmo se colocou. Segundo Robert Pippin, em Modernism as a philosofical problem, a tarefa do cidadão do mundo agora, na modernidade, é a busca da maioridade, ou seja, da autonomia. A tarefa, portanto, é o desenvolvimento do homem enquanto ser racional e livre, pois racionalidade e liberdade, do ponto de vista prático, são equivalentes.

O conceito de autonomia é formulado rigorosamente por Kant em sua Fundamentação da metafísica dos costumes. Autonomia é capacidade do homem de, espontaneamente, seguir leis. No caso específico da filosofia de Kant, do homem seguir a lei moral, cujo princípio fundamental é o imperativo categórico: age de tal forma que a máxima da tua ação possa se transformar numa lei universal.

O desenvolvimento do conceito de autonomia influenciou profundamente as idéias sobre o que seja justiça. Uma sociedade justa é uma sociedade em que os seus cidadãos sejam livres e que possam, portanto, exercer a sua autonomia. Desse modo, as instituições devem funcionar de tal maneira que permitam o desenvolvimento da autonomia dos seus cidadãos. Mas, o que significa isso exatamente?

Recentemente, Amartya Sen, em seu Desenvolvimento como liberdade, ilustra liberdade em sentido positivo de maneira didática: um cidadão do mundo deve ter a liberdade (em sentido positivo) de celebrar contratos, pois essa é uma condição fundamental para ele poder ter dignidade nas sociedades complexas contemporâneas. Sem essa liberdade, esse cidadão não pode nem ser empregado, quiçá, patrão... Contudo, o exercício positivo dessa liberdade requer uma série de não-impedimentos. Por exemplo, para exercer a liberdade de celebrar contratos, esse cidadão deve saber ler e escrever, pois, senão, de outro modo, ele não pode exercer sua liberdade de celebrar contratos. Pobreza nada mais é do que uma série de impedimentos, que não permitem ao homem o desenvolvimento de sua liberdade. Justiça social é o funcionamento das instituições de tal modo que elas permitam o desenvolvimento da liberdade de seus cidadãos, numa palavra, que eles sejam autônomos.