sexta-feira, 18 de julho de 2008

Carta de um louco

Reproduzo abaixo um pedaço do conto Carta de um louco, de Guy de Maupassant, relembrado pela Barbara em uma conversa sobre a física moderna, com o nosso amigo José Antônio. Ficou um pouco extenso para um post, mas a história vale a pena, especialmente para aqueles interessados na evolução psicológica, que só a literatura consegue fazer, das idéias científicas do século XVII.

Carta de um louco

Meu caro doutor, eu me coloco nas suas mãos. Faça de mim o que quiser.
Vou descrever-lhe, de maneira bem franca, o meu estranho estado de espírito, e o senhor julgará se não seria melhor que tomassem conta de mim por algum tempo numa casa de saúde, em vez de me deixar sujeito às alucinações e aos sofrimentos que me atormentam.
Eis a história, longa e exata, do mal singular da minha alma.
Eu vivia como todo o mundo, contemplando a vida com os olhos abertos e cegos do homem, sem me espantar e sem compreender. Vivia como vivem os animais, como vivemos todos, executando todas as funções da existência, examinando e crendo ver, crendo saber, crendo conhecer o que me cercava, quando, um dia, percebi que tudo é falso.
Foi uma frase de Montesquieu que iluminou bruscamente o meu pensamento. Ei-la:

“Um órgão a mais ou a menos na nossa máquina faria de nós uma outra inteligência. ...Enfim, todas as leis estabelecidas sobre o fato da nossa máquina ser de uma certa maneira, seriam diferentes se a nossa máquina não fosse desta maneira.”

Refleti sobre isto durante meses, e meses, e meses, e, a pouco e pouco, uma estranha clareza penetrou em mim, e essa claridade fez em mim a noite.
Com efeito, - os nossos órgãos são os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós. Quer dizer que o ser interior, que constitui o eu, se encontra em contato, por meio de uns quaisquer filamentos nervosos, com o ser exterior que constitui o mundo.
Ora, não só esse ser exterior nos escapa pelas suas proporções, a sua duração, as suas propriedades inumeráveis e impenetráveis, as suas origens, o seu porvir ou os seus fins, as suas formas longínquas e as suas manifestações infinitas, como ainda os nossos órgãos não nos fornecem, sobre a sua parcela que podemos conhecer, senão informações tão incertas, quanto pouco numerosas.
Incertas, porque são apenas as propriedades dos nossos órgãos que determinam para nós as propriedades aparentes da matéria.
Pouco numerosas, porque, não sendo os nossos sentidos mais que cinco, o campo das suas investigações e a natureza das suas revelações encontram-se bem restringidas.
Explico-me. - O olho nos indica as dimensões, as formas e as cores. Ele nos engana sobre esses três pontos.
Só pode revelar os objetos e seres de dimensão média em proporção com a estatura humana, o que nos levou a aplicar a palavra grande a certas coisas e a palavra pequeno a outras, somente porque a sua fraqueza não lhe permite conhecer o que é muito grande ou muito pequeno para ele. Donde resulta que ele não sabe e não vê quase nada, que o universo quase inteiro lhe permanece oculto, a estrela que habita o espaço e o animálculo que habita a gota de água.
Mesmo se ele tivesse cem milhões de vezes a sua potência normal, se percebesse no ar que respiramos todas as raças de seres invisíveis, assim como os habitantes de planetas vizinhos, existiriam ainda números infinitos de raças de animais menores e mundos de tal maneira longínquos que ele não os alcançaria.
Portanto, todas as nossas idéias de proporção são falsas, já que não há limite possível nem para a grandeza, nem para a pequenez.
A nossa apreciação das dimensões e das formas não tem nenhum valor absoluto, sendo determinada unicamente pela potência de um órgão e por uma constante comparação com nós mesmos.
Acrescentemos que o olho é, ainda, incapaz de ver o transparente. Um copo sem defeito o ilude. Ele o confunde com o ar que também não vê
Passemos à cor.
A cor existe, porque o nosso olho é constituído de tal sorte que transmite ao cérebro, sob a forma de cor, os diversos modos em que os corpos absorvem e decompõem, segundo a sua constituição química, os raios luminosos que os atingem.
Todas as proporções dessa absorção e dessa decomposição constituem os matizes.
Logo, esse órgão impõe ao espírito a sua maneira de ver, ou melhor, o seu modo arbitrário de constatar as dimensões e de apreciar as relações entre a luz e a matéria.
Examinemos o ouvido. (...)
Que dizer do gosto e do cheiro? Conheceríamos os perfumes e a qualidade dos alimentos sem as propriedades extravagantes do nosso nariz e do nosso paladar?
No entanto, a humanidade poderia existir sem o ouvido, sem o gosto e sem o olfato, quer dizer, sem qualquer noção do ruído, do sabor e do odor.
Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a menos, ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns órgãos a mais, descobriríamos, à nossa volta, uma infinidade de outras coisas, a respeito das quais jamais suspeitaremos da falta de meio para constatá-las.
Enganamo-nos julgando o Conhecido, e estamos rodeados pelo Desconhecido inexplorado.
Logo, tudo é incerto e apreciável de maneiras diferentes.
Tudo é falso, tudo é possível, tudo é duvidoso.
Formulemos esta certeza servindo-nos do velho ditado “Verdade deste lado dos Pirineus, erro do outro”.

E digamos: verdade em nosso órgão, erro ao lado.

Dois e dois não devem mais ser quatro fora da nossa atmosfera.

Verdade sobre a Terra, erro mais além, donde concluo que os mistérios entrevistos como a eletricidade, o sono hipnótico, a transmissão da vontade, a sugestão, todos os fenômenos magnéticos, só nos permanecem ocultos porque a Natureza não nos forneceu o órgão ou os órgãos necessários para compreendê-los
Depois de me ter convencido de que tudo o que os meus sentidos me revelam não existe senão para mim na maneira em que o percebo, e seria totalmente diferente para um outro ser de outro modo organizado, depois de ter concluído que uma humanidade feita de outro jeito teria sobre o mundo, sobre a vida, sobre tudo, idéias absolutamente opostas às nossas, pois, o acordo das crenças não resulta senão da similitude dos órgãos humanos, e as divergências de opinião provêm somente de ligeiras diferenças de funcionamento dos nossos filamentos nervosos, fiz um esforço de pensamento sobre-humano para conjecturar o insondável que me cerca.

Enlouqueci?

(...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário