terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Filósofo: merecedor de açoites

Abaixo segue o ataque de Cálicles à filosofia como profissão.
A censura ao filósofo, Sócrates, encontra-se no Górgias de Platão.
Certamente é o ataque mais eloqüente contra a filosofia que já li.
Cada vez me impressiono mais com Platão: de fato, está tudo ali.

A filosofia, Sócrates, é de fato, muito atraente para quem a estuda com moderação na mocidade, porém acaba por arruinar quem a ela se dedica mais tempo do que fora razoável. Por bem dotada que seja uma pessoa, se prosseguir filosofando até uma idade avançada, forçosamente ficará ignorando tudo o que importa conhecer o cidadão prestante e bem-nascido que ambicionar distinguir -se. De fato, não somente desconhecerá as le is da cidade, como a linguagem que será preciso usar no trato público ou particular, bem como carecerá de experiência com relação aos prazeres e às paixões e ao caráter geral dos homens. Logo que procuram ocupar-se com seus próprios negócios ou com a política, tornam-se ridículos, como ridículos, a meu ver, também se tornam os políticos que se dispõem a tomar parte em vossas reuniões e vossas disputas. Aplicam-se-lhes as palavras de Eurípides, quando diz que todo indivíduo brilha naquilo em que aplica a maior parte de seus dias e entre todos os outros se distingue. Mas evita e critica aquilo em que é inferior, elogiando o oposto, levado pelo sentimento de parcialidade, o que é uma maneira de elogiar a si mesmo. No meu modo de pensar, o certo será ocupar-se com ambas as coisas. É belo o estudo da filosofia até onde for auxiliar da educação, não sendo essa atividade desdouro para os moços. Mas prosseguir nesse estudo até idade avançada, é coisa supinamente ridícula, Sócrates, reagindo eu à vista de quem assim procede como diante de quem se põe a balbuciar e brincar como criança. Quando vejo uma criança na idade de falar dessa maneira, balbuciando e brincando, alegro-me e acho encantador o espetáculo, digno de uma criatura livre e muito de acordo com aquela fase da existência; porém se ouço uma criaturinha articular com correção as palavras, doem-me os ouvidos e acho por demais forçado essa maneira de falar, que se me afigura linguajar de escravos. Pelo contrário, um adulto falar ou brincar como criança é procedimento ridículo, indigno de homens e merecedor de açoites. É precisamente isso que se dá comigo com relação aos que se dedicam à filosofia. Alegra -me o espetáculo de um adolescente que se aplica no estudo dessa matéria; assenta -lhe bem semelhante ocupa ção, muito própria de um homem livre, como considero inferior e incapaz de realizar alguma ação bela e generosa quem nessa idade descura da filosofia. Mas, quando vejo um velho cultivá-la a destempo, sem renunciar a tal ocupação, um homem nessas condiçõe s, Sócrates, para mim é merecedor de açoites. Como disse há pouco, quem assim procede, por mais bem-dotado que seja, deixa de ser homem; foge do coração da cidade e das assembléias, onde, exclusivamente, no dizer do poeta, os homens se distinguem, para meter-se num canto o resto da vida, a cochichar com três ou quatro moços, sem jamais proferir um discurso livre, grande ou generoso.

2 comentários:

  1. Fabian,

    Muito legal essa passagem! Fiquei curioso: o que Sócrates (Platão) responde?

    Falvio

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  2. Sócrates — Sei muito bem que se concordares comigo sobre as opiniões de minha alma, é certeza estar eu com a verdade. De fato, considero que, para tirar a prova completa que permita saber se uma alma vive bem ou mal, são necessários três requisitos que em ti vejo reunidos: conhecimento, boa vontade e franqueza. Já encontrei muitas pessoas que não se acham em condições de pôr-me à prova, por não serem tão sábias como tu; outros são sábios, porém não se dispõem a dizer-me a verdade, por isso mesmo que não têm por mim o interesse que revelas. Os dois forasteiros aqui presentes, Górgias e Polo, são, realmente, sábios e meus amigos, porém carecem de franqueza, além de se mostrarem mais tímidos do que fora necessário. E, como poderia ser de outra maneira, se a timidez os leva a se contradizerem reciprocamente, por acanhamento, diante de numerosa assistência, e isso em assunto de tamanha relevância? Em ti, porém, reúnem-se todas essas qualidades que faltam nos demais. Tua instrução é das mais sólidas, o que poderão atestar muitos atenienses, além de seres bem intenciona do a meu respeito. Que prova aduzirei? Vou revelar-te. Sei perfeitamente, Cálicles, que vós quatro: tu, Tisandro de Afidna, Andrão filho de Androtião, e Nausícides colargense vos associastes para estudar filosofia. De uma feita, cheguei a ouvir quando determináveis até que ponto seria aconselhável cultivar a sabedoria, tendo certeza de que prevaleceu a opinião de que não é conveniente prolongar demais semelhante estudo. Chegastes, até, a tomar o compromisso uns com os outros de não vos tomardes sábios além da conta, para não virdes a vos arruinar involuntariamente. Por isso, quando vejo que me aconselhas como fizeste com teus amigos mais chegados, encontro a mais eloqüente prova de que és, de fato, bem intencionado a meu respeito. Que sabes ser franco sem acanhamento, tu próprio o declaraste, o que, aliás, é confirmado pelo teu discurso de há pouco. De tudo isso, o que se infere até o presente momento é que a proposição em que estiveres de acordo comigo deverá ser considerada como suficientemente comprovada por ambos, sem que nenhum de nós necessite aduzir novos argumentos como reforço. Pois é evidente que não poderias concordar comigo nem por carência de sabedoria nem por excesso de timidez, muito menos com o propósito de enganar-me, visto seres meu amigo, conforme tu mesmo o declaraste. Assim, é fora de dúvida que tudo aquilo em que estivermos de acordo representa a. mais alta expressão da verdade. Não há mais belo tema de estudo, Cálicles, do que isso mesmo que mereceu censura de tua parte, a saber, o que o homem deve ser e a que deve aplicar-se, e até que ponto será preciso fazê-lo, ou seja na velhice ou na mocidade. No que me diz respeito, se eu cometo na vida alguma falta, podes estar certo de que não o faço de caso pensado, porém por ignorância. Por isso, uma vez que começaste, não pares de admoestar-me; indica-me claramente a que tenho de aplicar-me e qual a maneira de consegui-lo, e, no caso de vires que me declaro agora de acordo contigo sobre algum ponto, mas que de futuro não procedo conforme prometi, podes qualificar-me de pusilânime e nunca mais me aconselhes, uma vez que me revelei indigno de teus esforços. Volte mos a considerar o assunto do começo: que é o que tu e Píndaro entendeis por justiça natural? O direito do mais poderoso de tomar à viva força os bens do mais fraco, ou o de dominar o melhor sobre o pior, ou de ter mais o nobre do que o que vale menos? É outro o teu conceito de justiça, ou fui fiel em minha definição?

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